Walquíria está internada devido a uma doença grave. Mesmo sendo exposta a bons tratamentos medicamentosos a enfermidade continuou a avançar. Ela está agora bastante debilitada, acamada, inchada, necessitando de dispositivos para urinar, com uma sonda no nariz para drenar sucos digestivos que seu corpo não consegue mais processar.
Dois dias atrás, passou a maior parte do tempo dormindo e, quando abria os olhos e se comunicava, parecia estar em um universo onírico, revivendo momentos passados ou ainda sonhos inalcançados.
Seus olhos estão distantes, as palavras que balbucia são de difícil compreensão. Parece que, às vezes, está no trabalho e às vezes em casa. E, em uma ocasião, pareceu estar cuidando dos filhos Diego e Leandro. Pelas suas falas, ambos deviam estar na condição de crianças, aprontando alguma traquinagem.
Diego é um filho dedicado aos seus cuidados e está há mais de uma semana dormindo sentado em uma poltrona, bem desconfortável, em um quarto coletivo de uma ala da enfermaria do hospital. Apesar do cansaço físico e mental, ele sempre é muito gentil e doce com as palavras, tanto comigo quanto com toda a equipe de saúde que assiste a sua mãe. Diariamente ele nos passa boletins minuciosos de como Walquíria tem passado.
Hoje, a voz de Diego embargou e não foi preciso que eu perguntasse nada para entender o que ele queria me dizer. Mesmo com a máscara ocultando boa parte de sua expressão facial, seus olhos já me diziam tudo que eu precisava saber, ainda mais quando as lágrimas vieram à tona. Ele sabe o que está acontecendo. Há momentos em que o silêncio, que também faz parte da comunicação, expressa melhor os sentimentos do que qualquer palavra. Há momentos em que a gente sente o que os verbos não conseguem concluir. Assim tivemos nossa conversa sem palavras, só com os olhos, as lágrimas e o toque.
O outro filho, Leandro, é budista e me disse que entende o processo que a mãe vive como um natural, apesar do sofrimento envolvido. Compartilhei com ele sobre uma leitura do “Livro Tibetano do Viver e do Morrer”, de Songyal Rinpoche, que discorre o processo de morte como sendo a dissolução dos quatro elementos. De acordo com o budismo tibetano, temos a dissolução sequencial dos elementos, do mais denso ao mais leve, na seguinte ordem: terra, água, fogo e ar.
A primeira dissolução é a da terra, quando o corpo perde a sua energia vital com piora progressiva, até um momento de total restrição na cama e incapacidade de autocuidado. Aos poucos, nosso nível de consciência também vai diminuindo, ficamos menos atentos ao nosso redor, ficamos num movimento mais introspectivo, um mergulho dentro de si.
Na dissolução da água perdemos o equilíbrio e o controle dos nossos fluidos, podemos ficar inchados, ter alguma secreção nasal ou nos olhos, perdemos a capacidade de controle da urina.
Na dissolução do fogo, o nariz e a boca secam e nosso calor começa a se dissipar, somos incapazes de nos alimentar.
E, assim como recebemos o ar como o último elemento ao nascermos, este é o último elemento a diluir e é quando temos a alteração do nosso ciclo respiratório, ficando difícil de respirar, com inspirações curtas e longas expirações até o momento em que a respiração cessa.
Imagino que, para muitos, ler sobre esse processo seja um tanto quanto desconfortável ou amedrontador. Mas, assim como lidamos com o nascimento, temos que lidar com a morte porque ela faz parte da nossa natureza e do nosso ciclo da vida.
Aprofundar-nos do conhecimento nesse quesito pode nos instrumentalizar para que lidemos melhor com as nossas experiências. Saber como ocorre a sequência pode desconstruir imagens teatrais do processo de morrer.
Em muitos casos, o parto da alma ocorre com muita tranquilidade sendo até imperceptível. Em especial, se ocorre acompanhado por profissionais paliativistas que façam um bom manejo de sintomas.
Educação para a vida inclui falar sobre morte. Educar é ampliar as possibilidades da vida de cada um de nós, e ampliar a visão sobre tabus como a finitude tem um significativo valor envolvido. Saber-me finita me faz apreciar momentos, me faz redescobrir coisas que sempre estiveram por aqui, como um banco de praça, um céu azul ou o mar de Santos. Os olhos podem ser generosos, tudo depende do que temos dentro de nós.
Nasci em Santos e morei até os 25 anos por aqui. Sendo caiçara, frequentei muito a praia. Mas, quando me mudei para São Paulo, me tornei mais contemplativa, mais nostálgica. Nos sete anos em que morei por lá, a cidade adquiriu um novo tom, como se meus olhos tivessem lentes que enxergavam os mesmos lugares de forma mais generosa.
Comentando isso com a minha avó, ela me disse que não eram meus olhos que estavam mudados, e sim meu coração. O que vem de dentro da gente tem um grande impacto e muda não somente a interpretação dos fatos como também o desfecho.
Dona Walquíria fez a dissolução do ar na tarde desse mesmo dia da minha conversa sem palavras com o Diego. Sua passagem foi serena e em paz e seus filhos, após as conversas sobre a morte, transformaram o seu luto nessa minha história contada, contribuindo para uma mudança no olhar sobre a vida de todos nós.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista