“Há um menino, há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
ele vem pra me dar a mão”
(Fernando Brant e Milton Nascimento).
“Amar é ter um pássaro pousado no dedo”, diria Rubem Alves. Neste momento, para mim, alegria é comer uma goiaba após uma experiência de quase morte.
Carolina é uma executiva paulistana do mundo corporativo com uma carreira profissional de bastante sucesso. Cursou uma boa universidade, fez Master of Business Administration (MBA), trabalhou na Europa. Aos quarenta anos tinha um patamar de trabalho tão alto e desproporcional quanto sua felicidade. Seus olhos pareciam não enxergar a beleza do Ipê amarelo de sua rua, muito menos o céu que ficava cada dia mais cinzento na grande metrópole de sua residência.
Um dia, se descobre doente. Graças aos seus recursos, ela fez o diagnóstico precoce e começa quimioterapia para tratar um câncer de mama que veio tão subitamente quanto uma tempestade de verão. Daquelas que alagam ruas e causam desmoronamentos. Mas, neste caso, o derruimento era do seu corpo e de seus sentimentos. Foram longos doze meses de tratamento com mudanças na autoimagem e uma desconstrução de si: turbante para fugir dos olhares piedosos de sua calvície, maquiagem para modelar as olheiras de quem não conseguia pregar olho. Lenços na bolsa para enxugar lágrimas que começaram a surgir espontaneamente e a partir do inesperado.
Um dia, chorou ao ver um casal de velhinhos de mãos dadas. Em outro, ao ver uma criança chutando uma bola. O mesmo processo que a fez sentir o maior medo e as maiores dores a fez ver beleza em tudo. Começou a ter arrepios ao mirar a lua no céu e a se emocionar com o canto dos pássaros. Até comprou um bebedouro para um beija-flor que visitava a sua janela diariamente. Foi passar um final de semana na casa de uma amiga no interior e caiu em prantos com chamado do vendedor de picolé na rua que anunciava com entusiasmo o sorvete de chocolate.
Reparando a mudança, sua psicanalista parafraseou Rubem Alves e lhe disse que ela tinha ganhado olhos de poeta… “Os poetas ensinam a ver”.
A recém-poeta teve uma complicação cirúrgica na sua mastectomia e permaneceu quatro semanas na UTI. Passou o tempo todo dormindo profundamente e com dispositivos tecnológicos sustentadores da vida para que os tratamentos médicos tentassem reverter sua situação. Ficou intubada, com sonda de alimentação, fez hemodiálise. Sua família, diariamente, recebia boletins sobre a gravidade de sua situação. E ela? Ela sonhava…
No mês que ficou em seu mundo interior, passeou e voou por céus azuis, mergulhou em mares gelados e ficou muitos dias no sítio de sua família com a Carol criança. Cacá, como sua avó lhe chamava, adorava subir num pé de goiabeira que tinha no quintal. Subia tanto que conhecia cada galho, sabia onde colocar o pé para chegar bem perto das nuvens. Procurava as frutas mais maduras que conhecia apenas de cheirar a casca. Limpava-as na sua camiseta e saboreava o aveludado azedinho. Não se preocupava nem com as possíveis larvinhas que poderiam estar morando dentro dela. Ela as via como serezinhos dentro de um mundo encantado de cor vermelha. Só saía de lá quando sua vó ou mãe gritavam:
– Sai daí, menina. Você ainda vai quebrar um braço ou ganhar um verme atracada nessa goiabeira!!!!!!!
Mas Cacá não saía. Abraçava sua amiga que apelidou de Godofreda. As folhas de Godofreda a refrescavam do sol de verão e seu tronco tinha a marca registrada: C.A.M. Passou sua infância inteira acompanhando suas iniciais na sua melhor amiga.
Foi essa amiga que ficou com Carolina poeta até que ela acordasse quando os sedativos foram retirados. A poetisa teve que reaprender a falar, a comer, a sentar e a andar. No hospital em que ficou, tinha uma excelente equipe interprofissional com médicos, enfermeiros, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais que, juntos, trabalhavam em sua reabilitação. Ela foi cuidada em todas as suas dimensões biopsicossociais. As lágrimas, suas companheiras atuais, estavam diariamente presentes como no primeiro gole de água no copo ou no primeiro banho no chuveiro.
Quando a equipe liberou comida, sua mãe lhe trouxe, dentre tantas guloseimas, uma goiaba. Não sei bem quem a devorou… Se foi a Carolina poeta e ou a Cacá amiga da Godofreda, mas ao presenciar a mordida na fruta, tive certeza da definição de alegria.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista