“O! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada!
Oh! noite que juntaste
Amado com amada
Amada já no Amado transformada!
(São João da Cruz)
Eu não consegui ver a conjunção de Júpiter e Saturno, cujo ponto de maior proximidade ocorreu na segunda-feira, dia 21 de dezembro de 2020, na noite mais curta do ano, por conta do solstício de verão no hemisfério sul de Gaia.
Queria ter visto, mas choveu aqui no prédio dos meus pais, em Jundiaí, onde vim me refugiar. Embora tenhamos uma boa vista a partir do quintal, de onde ergue-se o amplo céu sobre o centro velho da cidade, tudo ficou encoberto.
Não tive disposição de acompanhar online, como alguns amigos fizeram, mas um vídeo gravado de forma amadora em uma praia do Chile me comoveu. A luminosidade intensa dos dois astros conectados seria um simulacro da estrela de Belém, apontando-nos o caminho do criador? Justo nesta semana em que no mundo ocidental celebramos o nascimento do menino Jesus, que ressuscitou para nos salvar?
Talvez eu não tenha outra chance, em minha curta existência, de ver esse mesmo fenômeno. A ocasião anterior em que ele ocorreu foi em 16 de julho de 1623; a próxima será em 15 de março de 2080. Se ainda estiver vivo, estarei prestes a completar 100 anos. Não é impossível, mas improvável. Sinceramente, embora queira tê-lo visto, não faço tanta questão de ter uma nova oportunidade.
Afinal, sinto que já vivi demais, sobretudo depois deste ano de pandemia, em que perdi meu grande amor para o câncer. Não ter conseguido visualizar o beijo de Júpiter em Saturno (ou seria de Saturno em Júpiter?), me parece o ensinamento último que eu precisava para entender, de uma vez por todas, que a existência de qualquer um de nós é uma sucessão aleatória e ingovernável de acontecimentos incontroláveis.
A questão é: o que podemos fazer diante dessa constatação? Como interpretar e absorver esses golpes do acaso que a vida nos dá: a morte de um grande amor ou a perda da chance de ver um fenômeno astronômico raro?
Lembrei-me, então, de um livro que li anos atrás, escrito por um autor esquecido pela história da literatura, mas que marcou a mim e a Lia e foi objeto de inúmeras conversas entre nós. A edição desse livro, que guardo com carinho em minha biblioteca, com suas páginas amareladas e lombada desgastada, foi comprada por nós dois em um sebo no dia 28 de novembro de 2002, como revela a anotação que fiz na folha de rosto dessa publicação do Clube do Livro de 1º de julho de 1950.
A Teoria da Distância foi escrita por Aristides Ávila. Em sua primeira edição, tem um subtítulo: “romance de humor”. Embora hoje esteja completamente esquecida, na época de seu lançamento recebeu da Academia Brasileira de Letras o prêmio de melhor novela do ano de 1937. Quem a descobriu foi Fernando Bittencourt, um de meus melhores amigos na época da faculdade, e um leitor prodigioso.
Fernando, que chamávamos de Lorde, punha seus olhos argutos e famintos de conhecimento em qualquer conjunto ordenado de folhas que chegasse a suas mãos. Não me lembro em que biblioteca ele se encontrou com essa obra, sei apenas que ao terminar de lê-la, surpreso com a qualidade, indicou-me que fizesse o mesmo.
Eu, então, mergulhei de cabeça na leitura, como costumava fazer com os textos que o Lorde sugeria, e lembro de a ter adorado, a ponto de recomendá-la a Lia. Ela, por sua vez, se bem me recordo, leu rapidamente e achou a história muito divertida. Assim, A Teoria da Distância se transformou numa espécie de “livro cult” particular de nossa turma. Quando decidimos produzir uma revista de grandes reportagens como trabalho de conclusão de curso da faculdade de jornalismo, realizei uma investigação sobre Ávila. À época, encontrei pouquíssimos registros biográficos, mas pude ler toda sua obra, dois romances, um com o título de Judas, um evangelho escrito da perspectiva do traidor, e outro chamado Além da Chinela; uma compilação de contos chamada Juízo Final além de outros casos de menor gravidade, e algumas traduções, com textos de sua autoria na apresentação.
Descobri que ele era paulistano, trabalhou em vários jornais da capital, foi homenageado com nome de rua na Vila Carrão, em São Paulo, mas não muito além disso.
Cheguei a perguntar ao professor Antônio Cândido, quando fui entrevistá-lo em sua casa, se ele tinha alguma pista desse autor. O mestre coçou a cabeça, mas não fazia ideia de quem era. Consequentemente, não pôde me ajudar.
Esta semana, recordei-me de A Teoria da Distância, e o reli. Escrito em seu estilo machadiano, me divertiu, e percebi nele aspectos que me escaparam anos atrás, especificamente uma qualificada postura crítica sobre os limites da ciência. A história é narrada por um órfão criado numa família barulhenta do bairro do Jabaquara que se torna filósofo e, devido às suas grandes aptidões para o pensamento abstrato, recebe o título de Doutor em Ciências Incríveis e Absolutas.
A certa altura da vida, servindo o quartel, é mandado para o xadrez por ter cometido alguma besteira, e descobre uma forma de viajar no tempo.
Partindo do princípio de que só enxergamos algo porque temos a luz, e que esta se desloca a 300 mil quilômetros por segundo, o Doutor recorda que a noite é uma fotografia do passado como nos ensinam os astrônomos. Ou seja, que as luzes de um céu estrelado foram emitidas anos-luz antes, embora tenhamos a impressão de vê-las no presente. No caso do Sol, que dista quase 150 milhões de quilômetros da Terra, a luz demora oito minutos para chegar até nossas retinas. Assim, se pudéssemos nos transportar para o Sol, e seguir em contato com o que ocorre na Terra, interagiríamos com algo que aconteceu minutos antes, o que bastaria para consertar erros cometidos.
“De Saturno, por exemplo, que dista da Terra, se não me falha a memória, quase dez vezes quanto o Sol, poderíamos rever o que sucedeu há cerca de 80 minutos, ou seja, mais ou menos uma hora e meia! Vamos para mais longe! Vamos a Netuno…que fica a uma distância 30 vezes maior que a do Sol (…) Se eu me achasse agora em Netuno, estaria vendo esta face da Terra com quatro horas de atraso…”.
Aplico esse raciocínio para minha vida. Se eu estivesse agora em Sirius, retrocederia 22 anos e 4 meses, mais ou menos para o momento em que atingi a maioridade. Ao último aniversário que passei sem que Lia fosse minha namorada.
No caminho, em algum ponto perdido no Espaço Sideral, me veria escrevendo o cartão de natal que dei a ela em 2001, e que reencontrei em minha caixa de quinquilharias esta semana.
Naquele fim de ano, tínhamos justamente acabado de receber o prêmio de melhor trabalho de conclusão de curso por aquela revista que trazia a reportagem sobre Ávila, e nos preparávamos para as grandes transformações da vida adulta.
“Lilica, meu amor
Ai de mim viver sem você. Como sou feliz de te ter ao meu lado! Você é uma mulher sensacional, apaixonante, adorável… (poupemos os adjetivos). Este foi um bom ano para a gente. Tivemos muito para comemorar juntos. Nossos pequenos projetos de vida conjuntos terminaram da melhor forma possível. O momento agora é de construirmos os novos passos que daremos lado a lado. A minha existência já está atrelada a sua. É algo que nos supera, que nos transcende, é algo mágico. Escolhi com carinho os presentes. É para você ficar ainda mais linda. Escrevi esse bilhete com frases diretas e períodos simples porque sei que você gosta que eu faça isso.
Eu te amo,
Rô”.
Se pudéssemos, então, dominar a distância e viajar no tempo, a que momentos voltaríamos? Quais suprimiríamos na busca por acabar com a dor?
São essas as perguntas que levam o Doutor em Ciências Incríveis e Absolutas a aprofundar sua teoria. Os seres humanos ainda não encontraram uma tecnologia para realizar o teletransporte de seus corpos, mas podem usar a memória como astronave. E assim, por meio de lembranças, mais ou menos distantes, reviver emoções.
No livro, esse raciocínio dá origem a uma equação engraçadíssima, cujo resultado é a constatação de que “quanto mais nos esforçamos por evocar um prazer ou uma dor qualquer, mais nos aproximamos do gozo ou do sofrimento originais”.
Assim, de acordo com Ávila, a felicidade poderia ser obtida por meio do esforço individual de atrair as memórias boas e dispensar as ruins.
Escreve o autor:
“O poder de evocação que nós temos é como o sol: nossas próprias dores, colocadas aos nossos pés, recebem um sol a pino, e ardem; postas à distância, recebem raios oblíquos que pouco iluminam, e não chegam a queimar. Ficam equivalentes às dores alheias…”
Neste natal, o primeiro em vinte anos que não terei Lia a meu lado, reencontrei-me com a teoria da distância e tenho procurado aplicá-la à minha vida, evocando somente as boas memórias. Não é fácil, porque a tristeza insiste em dar as caras. Mas tem sido um exercício necessário e, diria, saneador.
Entro em minha fictícia máquina interestelar e no painel de comando visualizo imagens e sentimentos que me arrancam lágrimas de saudade e inúmeros sorrisos: nado no mar de Ipanema de Cajaíba, para onde fomos tantas vezes nos refugiar e celebrar o Natal com sua família, que se tornou minha; discuto política alegremente com Tiago e Márcia no quintal da casa de Cananeia, bebendo espumante geladinho; corro com Júlia, Marina e Gabriel pelas trilhas de Picinguaba; faço uma celebração particular com Mari e Andreza da Associação dos Agregados dos Côrtes; compartilho com meu sogro a última Coca-Cola gelada na praia do Foles da Ilha do Cardoso; toco violão enquanto Mário Lúcio debulha seu piano elétrico; experimento a cerveja artesanal do Henrique; gargalho com Karl e seu filho, que mantém comigo uma ancestral relação de amor; ameaço comer o umbigo do Dudu, meu sobrinho; vejo meus filhos felizes e ansiosos com o amigo secreto e os inúmeros presentes que a Vó Lu, minha sogra, sempre escolhe com carinho para todos nós; danço com Lia nu na madrugada, depois que todos foram dormir e podemos então nos amar em paz; como paella, bebo bons vinhos, cerveja e cachaça, leio, durmo, jogo truco e dou risada, falo alto, até brigar eu brigo, desnecessariamente, por tudo e um pouco mais.
Ao finalizar esse sobrevoo, prenhe de tudo que vivi, dou graças à vida e encontro-me novamente com as palavras do sabido filósofo do Jabaquara:
“O segredo da felicidade consiste, na maior parte, em saber evocar tudo de bom que nos tenha vindo com os dissabores. Isto é que é cultivar com inteligência o sentimento da saudade”.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista