Hoje, eu e meu filho Bento acordamos por volta das 6 horas da manhã. É sempre assim por aqui, acordamos cedo, dormimos cedo. Tá, quase sempre.
Dividir a cama com o meu filho é uma das coisas mais bonitas que eu tenho na vida, acordar no meio da noite – como quase sempre acontece – e olhar aquele rostinho perfeito, observar sua respiração tranquila, os cabelos enrolados, a boquinha em formato de coração. Durante esses momentos eu entendo que, para a natureza, só é possível a perfeição.
O Bento, no auge da vitalidade de seus 2 anos de idade, abre os olhos e já pula da cama, elétrico, falante, chamando “mamãe” mais vezes do que consigo responder e explorando todos os cantinhos possíveis da nossa nova casa.
Eu já não funciono exatamente assim, e preciso de água no rosto para atingir o mesmo nível de despertar. Depois, sim, me sinto pronta para encarar mais um dia, para acompanhar a potência de uma existência novinha em folha.
Abro a porta da sala, que dá numa sacadinha perfeita, e com ele no colo começo a observar os movimentos na mata a nossa frente. Essa é a sorte de morar numa cidade pequena, cheia de natureza, com áreas preservadas. Era disso que eu sentia falta durante os seis meses que estive na Baixada Santista.
Meu despertador? Sabiás, araras-vermelhas e uma gralha-cancã bem simpática, que já está se sentindo bem à vontade para pousar em nossa sacada algumas vezes durante o dia.
Os barulhos que me acordam durante a noite? Cotias e teiús vagando através das folhas secas.
Perto da natureza eu me sinto mais eu, eu consigo escutar melhor as minhas próprias vozes. Observando as árvores todos os dias, tão próximas de mim, consigo perceber nossa crescente semelhança, como um filho que retorna para a casa dos pais depois de muito tempo: Tudo parece novo, não reconhecemos mais aquele lugar como a casa que nos abrigou por anos, mas sentimos o conforto, o amor, o aconchego. Sentimos o lar.
Talvez eu goste tanto de estar no “meio do mato” por sentir medo de muitas das manifestações de indivíduos da nossa espécie pelo mundo. Sinto um crescente incômodo com tanta desigualdade social, falta de empatia, pensamentos individuais e egoístas. Talvez a minha vontade de isolamento social, para me conectar com a natureza e me distanciar da convivência humana, seja a parcela de egoísmo que me cabe.
Depois do nosso café da manhã, com mesa posta e cheirinho de café pela casa, começo a movimentação dos afazeres domésticos. E entre uma troca de fraldas e um bolo de cenoura no forno, sapeio meu celular enquanto coloco roupas na máquina e o Bento pinta um desenho na mesa da sala.
De repente, entre fotos de natureza e frases poéticas, um post com a imagem do jogador de futebol Robson de Souza – condenado em 1º instância na Itália por violência sexual em 2017, e anunciado no último sábado como novo contratado do Santos Futebol Clube – acompanhado de frases que reproduziam o conteúdo de suas conversas, gravadas com autorização judicial, com um amigo, o outro criminoso condenado pelo mesmo crime.
A conversa começou a ser divulgada devido à crescente indignação da população pela contratação de “Robinho” pelo grande e renomado time de futebol. Os apelos pelo cancelamento do contrato tomaram grandes proporções nas redes sociais e o clube já começou a sofrer as consequências perdendo um importante patrocinador e tendo uma nota oficial divulgada pela Philco e outras empresas, horas atrás, EXIGINDO a rescisão do contrato.
Abominável, eu diria. Primeiro, o tamanho desrespeito às mulheres de todo o mundo que um homem condenado por este tipo de crime, nas circunstâncias em que ocorreu, possa tornar-se símbolo de heroísmo dentro de um esporte tão difundido e consumido quanto o futebol. Um homem que fala e pensa esse tipo de coisa que agora vimos divulgadas.
Segundo, que um homem – por ser homem – goze de tantos privilégios mesmo sendo um ser humano incapaz de enxergar uma mulher como outro ser humano. Mesmo criminoso, mesmo condenado. Fato bem evidente na transcrição das conversas gravadas.
A alegação do advogado de não saber sobre os detalhes do processo, numa tentativa patética de justificar o absurdo desta contratação, demonstra a total incompetência do sistema jurídico brasileiro, o mesmo sistema que culpa vítimas, coíbe as denúncias de abuso e se nega a realizar um aborto até quando o procedimento é solicitado através de medida legal e figura dentro dos casos previstos em lei que permitem sua realização.
Uma mulher vítima de estupro é colocada pela própria estrutura à margem da sociedade, duvidam de suas palavras e delegam a ela sempre o lugar de instigadora e merecedora da violência sofrida. Mas a mesma estrutura exalta um estuprador e o contrata para estampar as telas de nossos televisores.
Temo que continuemos assim, mas também acredito que continuaremos resistindo. Independentemente de quão cansadas estejamos, seguiremos lutando para mostrar que faremos de tudo para sermos vistas como pessoas, e para que criminosos paguem por seus crimes e não sejam normalizados em posições de destaque. O que seria isso se não mais uma tentativa de nos fazerem calar? Mais um esforço escancarado de perpetuar a ideia lamentável e absurda de que “tudo bem violentar as mulheres, tudo bem reduzi-las a coisas inanimadas e desprovidas de sentimentos. Nossa vida continuará inalterada”.
Uma luta sangrenta por nos manterem sempre submissas às suas vontades e desmandos. Homens que não sofrem consequências por seus atos. Adultos infantilizados como crianças incapazes de medir a maldade de uma situação, ou a humanidade de um semelhante.
Quando penso que precisamos de uma revolução eu não sei de que tipo de revolução precisamos.
Eu só sei que a Revolução é uma mulher, e que essa mulher é também uma mãe.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista