Subir os mais de 400 degraus do sopé ao cume do Monte Serrat parece difícil num primeiro momento, ainda mais pra quem não está no melhor de sua forma. Mas é um passeio bem agradável, que nos permite caminhar calmamente por meio das casas populares e observar os painéis que narram a via sacra de Jesus Cristo.
Os quatorze platôs com imagens bíblicas foram pintados na década de trinta do século passado e, ao menos uma vez por ano, são percorridos por peregrinos em uma procissão concorrida.
A última vez que enfrentei a escadaria foi em 2 de julho de 2018, na companhia de minha querida amiga Magui Guarita. O Google me ajudou a lembrar da data exata, porque a relaciono com o jogo entre Bélgica e Japão na Copa do Mundo, quando os japoneses quase venceram o time belga, que eliminaria o Brasil.
Poucos dias antes daquele passeio tinha ficado sabendo que as fortes dores que perseguiam Lia eram ocasionadas por um câncer raro de pulmão. E que esse câncer era incurável. Eu estava desolado. Magui percebeu e me convidou para andar e conversar.
Saímos da Sete de Setembro, onde fica nosso escritório, e começamos a flanar, aparentemente sem rumo. Quando dei por mim, estávamos em frente ao Itororó e propus a ela subirmos o morro. Magui, atleta, adorou a proposta, ainda mais porque feita por seu ex-aluno indisciplinado que costuma trocar exercícios funcionais por mesas de boteco. Só entendi o que realmente me impulsionou a fazer o convite a ela quando concluímos os 402 degraus e demos de cara com o pórtico da capela que homenageia a Nossa Senhora de Monte Serrat. Eu queria pedir ajuda à mãe de Deus.
Por muito tempo desliguei qualquer conexão com a espiritualidade, em nome de um materialismo edificado sobre a convicção de que a pior das opressões é dos homens pelos homens. Para aquele materialista que fui um dia, pouco importavam as manifestações invisíveis do sagrado, porque elas não seriam capazes de dar conta do mundo tal como ele é.
O que durou até eu me ver só, diante da dor ocasionada pela possibilidade de perder a mulher que eu sempre amei, a mãe dos meus filhos, minha companheira de sonhos e realizações.
Enquanto eu subia aqueles degraus do Monte Serrat, sob o olhar de um Cristo que jamais temeu a morte – mesmo sendo brutalmente torturado – porque se faria eterno, creio que fui me preparando para cruzar a porta que se apresentou diante de mim. Assim teve início uma jornada de aprendizagens essenciais para que eu possa enfrentar com alguma paz o luto.
Sim, eu me converti. Descobri a minha fé. Naquele dia, naquela igreja tão antiga, que ainda preserva paredes originais do século XVI, feitas de conchas e óleo de baleia, sentei e rezei à Nossa Senhora do Monte Serrat. Pedi à santa milagreira que sempre protegeu a Vila de Santos que ajudasse a mim e à minha família. Que soprasse sobre nós o vento da cura.
Depois de orar, eu e Magui compramos velas brancas e fomos até o oratório para acendê-las. Como é bonito aquele oratório! Construído no mirante de onde se vê o mar imenso, a barra, as ilhas, os prédios que fazem de Santos a cidade mais vertical do Brasil.
Numa outra ocasião, eu e Lia, namorando nesse mesmo mirante, ficamos analisando o porto com seus guindastes móveis, pontes para contêineres, trilhos, empilhadeiras, reachstackers. Lia tinha certeza que os guindastes eram esqueletos de dinossauros, e estavam ali há muito mais tempo do que nós imaginamos. Eu penso nisso sempre que os vejo.
Tenho um grande apreço pelo filósofo francês Michel Serres, que deu aulas aqui no Brasil e morreu em junho do ano passado, já bem velhinho. Em um livro que compila alguns de seus comentários radiofônicos, publicado com o título de “A felicidade está ao seu lado”, Serres explica a diferença entre esperança e fé.
Diz ele que “a esperança é um projeto, claro, que abrange a ação, ao passo que a fé é uma virtude que abrange a pessoa”. A esperança é adulta, a fé uma criança. A esperança é diurna, a fé noturna. Uma é lúcida, a outra desvairada. A esperança aplica o princípio da precaução; a fé zomba da precaução. A esperança nunca chega, a fé jamais vai embora. Por isso, a fé pode existir sem a esperança, mas a recíproca não é verdadeira. E diz Serres: “A fé é a força feminina da obstinação de viver”. Uma força que vi tantas vezes no olhar de Lia, e que para mim ganhou ainda mais sentido desde que ela se foi.
Em nenhum momento ao longo dos dois anos que separam este texto daquela incursão à capela da padroeira de Santos, a fé me abandonou. Talvez eu, sim, posso tê-la recusado sob influência da ira e do desespero, mas não ela a mim. A esperança, eu já conquistei e perdi muitas vezes, e hoje nem sei muito bem onde procurá-la. A fé, agora, mora dentro de mim e orienta minha religação com a espiritualidade, um processo que não tem nada a ver com nenhuma religião específica (gosto muito de muitas delas, sobretudo as orientais e de matrizes africanas).
O reconhecimento do sagrado me levou a aceitar que somos seres espirituais em uma pequena e impermanente jornada terrena. A partir dessa constatação, tenho procurado aprender com os mistérios e treinado minha voz para poder falar com Deus – entendido aqui como a conexão do um com o todo. Uma aprendizagem que passa pelo corpo, pelos sentimentos e pelo lento desenvolvimento da consciência.
Reza a história – ou a lenda – que em 1614, os aldeões santistas subiram o Monte Serrrat em busca de abrigo, pois estavam sendo perseguidos por piratas holandeses. Logo depois que chegaram ao cume sãos e salvos, uma encosta desabou e soterrou os invasores. O milagre foi atribuído à Nossa Senhora, que graças a esse e outros tantos foi eleita padroeira da cidade.
Naquele 2 de julho, quando visitei sua capela pela última vez, eu já tinha ouvido falar das longevas habilidades milagreiras da santa e por isso pedi a ela, com muito amor, pela vida de Lia. Nossa Senhora não me atendeu (acredito piamente que ela me atenderia se pudesse), mas ofereceu-me em troca a conexão com essa obstinada força feminina chamada fé.
Quando a saudade bate, no ritmo de expansão e contração do meu coração ferido, é minha fé que evoco. A mesma fé que Lia cultivou em seu processo de aceitação do ciclo de vida-morte-vida, de um jeito tão bonito e profundo que lhe permitiu atingir a iluminação.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista