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A correnteza do rio

Um dos meus refúgios são as águas doces em movimento e as montanhas para encontrar minha paz. As cachoeiras frias me dão a impressão de que, momentaneamente, a alma sai do corpo. Me sinto livre

Foto: Reprodução/YouTube

(…)

“Existe cachoeira?

Cachoeira é barranco de chão e água se caindo por ele, retombando,

o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma?

Viver é negócio muito perigoso”

(…)

(João Guimarães Rosa)

Mês passado minha sobrinha fez dez anos. Olho para ela e vejo uma ampla possibilidade de sonhos e desejos em uma vida com um futuro a se construir. Quando ela foi questionada sobre o que mais a entusiasmava em completar a sua primeira década de sua vida, ela disse que era andar no banco da frente do carro. Neste dia marcante, meu irmão enviou uma foto do momento e um sorriso expressava o que eu não consigo concluir com qualquer palavra escrita.

Paro e penso na simplicidade do que a faz feliz. Reflito sobre o que me deixa contente. Será que eu consigo me alegrar com “o simples”? Quando foi a última vez que me olhei com os olhos da menina que eu costumava ser? Cadê acriança que existe dentro de mim?

Clarissa nasceu no cerrado, no centro do estado de Minas Gerais, numa cidade pequena. Brincava em ruas de terra batida. Empilhava pedras na beira de rios como ninguém e mergulhava em cachoeiras. Passou a vida se aventurando em barrancos de chão com a água em movimento. Conhecia cada pedra de seu local predileto. Lá conseguia se conectar com o que dizia ser sua espiritualidade. Dizia que as montanhas que abrigam quedas de água são as casas dos espíritos da natureza. Que o vento é reflexo do movimento destes espíritos. Na natureza aprendeu sobre vida e morte. Foi acordada na manhã da morte de sua avó com um melancólico choro de tucanos. Sua mãe explicou que esse pranto era associado à tristeza, ao luto e à saudade. Um mês depois de Clarissa completar vinte e nove anos o tucano despertou a vizinhança ao chorar como nunca a perda de sua vida. Parecia também um lamento do que Clarissa poderia ter sido, afinal não aceitamos a morte em plena juventude.

Quando descobriu seu câncer avançado Clarissa encarou cada dia como uma oportunidade de driblar a morte. Estar diante da possibilidade de morrer despertou a sua vida. Ao mesmo tempo em que seguia o tratamento médico com picadas, medicações e periódicos exames, buscava os prazeres que a pregassem à existência. Como se tentasse adiar ao máximo o descolamento que o processo do adoecimento promove. Desafiava as recomendações médicas indo viajar sozinha um dia depois de aplicar um protocolo de quimioterapia. Se sentia mal, tinha muitos efeitos adversos, mas acreditava que era na natureza que encontraria seu reduto. Dizia que as chuvas torrenciais e as ventanias estariam mais dentro dela do que fora. Seria o melhor e o pior lugar para estar. Um lugar de geografia sentimental que carrega marcas que assinalam o corpo e a alma.

Com o tempo, o corpo de Clarice se modificou e a limitou. Mudanças na sua pele que se tornou amarelada como as flores do Ipê que tinha no quintal de sua casa. Os seus olhos cor de mel ficaram fundos e escuros, como as grutas que costumava se esconder quando criança. Estava cansada e sentia o seu espírito mais lento como um desconforto de um dia quente e sem vento. Assim como objetos guardados no fundo de uma gaveta, a falta de movimento e do sol estraga sem dó com nosso corpo. Ela tropeçava no peso de sua tristeza. Sentia um abismo dentro de si, como se as emoções estivessem em convulsão. Seis meses antes de completar trinta anos, ela faleceu num dia frio apesar da primavera. Em seu ritual de despedidahavia folhas secas e pedras distribuídas como lembrança. Suas cinzas foram jogadas na água corrente em movimento, o lugar onde ela expressou que desejaria estar.

Um dos meus refúgios são as águas doces em movimento e as montanhas para encontrar minha paz. As cachoeiras frias me dão a impressão de que, momentaneamente, a alma sai do corpo. Me sinto livre. Acho também que consigo acessar a minha felicidade. Nas minhas últimas férias, indo para o cerrado na travessia da Estrada Real, eu vi um tucano. Ele cantava um ambíguo canto agridoce. Será que chorava a morte de alguém? Possivelmente ocorria uma morte naquele instante, como em qualquer outro. Penso em Clarissa, penso em mim. Eu sou um pouco de cada história que trago em mim.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.

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