Ao chegar à altura do Monte Serrat, meu pai abria a janela de motorista do fusca alaranjado e nos convocava a sentir o cheiro de Santos, essa mistura fina de maresia e óleo queimado, oceano e porto. “Estamos em casa”, ele dizia. Eram os anos oitenta do século passado e esse ritual ocorria em todas as ocasiões que voltávamos à cidade, fosse para uma curta visita à casa da minha avó ou para uma temporada mais longa de verão, em algum apartamento alugado.
Os primeiros Savazonis vindos de Mantova aportaram por estas terras no século XIX e nelas permaneceram por algumas décadas, antes de partir rumo ao interior do estado. Eu, diferentemente do que muita gente pensa, não nasci nem cresci em Santos, mas aqui passei minhas doces férias de menino, ao lado de meus primos, Rafael e Raquel. Rafa morreu quando eu tinha quinze e ele dezenove anos e seu acidente de carro fraturou a família. Um dos efeitos colaterais de sua morte foi o fim da festa de reveillón na casa de meu tio Beto, irmão mais velho de meu pai. Depois dessa tragédia, afastei-me. Ao regressar, teria de enfrentar a dor. Não queria.
Por outro lado, jamais me senti confortável na Jundiaí em que nasci, e se cheguei a me apaixonar perdidamente por São Paulo quando moço, o amor foi se acabando depois de os filhos nascerem – mais dois curumins de quem a capital paulista queria roubar a infância. Brasília, onde Júlia e Chico nasceram, nunca foi uma opção para mim.
Talvez por isso, pelas recusas anteriores, eu tenha recordação tão precisa do momento em que decidimos viver em Santos. Foi depois de um agradável fim de semana, em que celebramos o casamento de meu irmão mais novo. Estávamos eu e Lia no carro, na serra, as crianças no banco de trás, dormindo, quando perguntei a ela: e se viéssemos morar aqui? Lia, que sempre foi uma amante do mar, respondeu-me de bate-pronto: seria ótimo.
E assim, dois meses depois, tínhamos endereço no Embaré e nossos filhos estavam matriculados em uma escola bem perto dessa nova morada. Tão logo nos estabelecemos, começamos a busca por um apartamento que pudéssemos comprar e reformar. Ele foi encontrado na Ponta da Praia e redesenhado exatamente como queríamos. Por anos, vivemos o melhor período de nossas vidas ali, cercados de alegria, de amigos e das famílias, com nossos gatinhos Mel e Bakunin.
Nos meses que antecederam sua morte, Lia refletiu muito sobre sua falta de raízes, ou, talvez, sobre suas raízes aéreas. Ela, que nasceu em Londrina, viveu em São José dos Campos, em cidades da Europa e a partir de sua vida comigo em São Paulo, Brasília e Santos, costumava recordar-se, nessas reflexões, do líder indígena Inaldo Kum’tum Gamela, dos Akroá-Gamela, do Maranhão. Kum’tum, em uma palestra que assistimos, falou sobre a importância do território para seu povo (território esse que lhes foi arrancado pelo colonizador), que tem a tradição de enterrar o cordão umbilical das crianças recém-nascidas para celebrar essa união entre o ser e suas origens. “Onde deveria ter sido enterrado meu umbigo?”, ela se perguntava.
Lia sabia que era das águas e dos ventos. Não havia terra que pudesse acolhê-la. Quando teve de decidir sobre o que deveria ser feito com seu corpo, pediu para ser cremada e que seus restos mortais fossem jogados em três diferentes lugares. Um deles, justamente, naquele ponto em que o canal seis avança até o mar. Ela costumava ir ali para meditar ou apenas apreciar a imensidão do oceano. Muitas vezes, ia acompanhada de nossos filhos. Era um de seus lugares prediletos na cidade. Quando a pandemia acabar, iremos garantir que sua vontade seja feita.
Naquela época em que meu pai dirigia seu fusca alaranjado, e que vir a Santos era uma alegria veronil, minha mãe tinha pendurado na sala de casa uma aquarela que reproduzia a imagem da Fortaleza da Barra. Eu sempre adorei aquele quadro. Caminhar pelo calçadão e admirar a edificação colonial sempre foi um dos passeios costumeiros de minha família. São inúmeras as fotos que fiz da impassível fortaleza, essa senhora que observa o fluxo dos navios desde o século XVI. Com essas imagens, talvez estivesse tentando reproduzir aquele quadro pintado por Ruy, em busca de minhas memórias inventadas, ou apenas quisesse fixar meu amor por um prédio tão mais velho que nós, testemunha de nossa violenta história.
Em janeiro de 2021 fará dez anos que vim morar em Santos. Rafa, meu primo, não está mais aqui. Lia também não. Outro dia, pedalando pela Ponta da Praia, em algum ponto entre a fortaleza e o canal seis, abaixei a máscara e senti novamente aquele cheiro de maresia e óleo queimado, de mar e porto, e tudo fez sentido. Santos não é a cidade em que nasci, mas é a cidade onde escolhi viver, a que mais tempo passei ao lado de minha amada companheira, a que vi meus filhos crescerem, brincando ao entardecer. É a cidade onde jazem meus amores mortos, onde quero que um dia dispersem o meu umbigo, quando não houver mais o que fazer neste plano. Em Santos, minhas memórias estão vivas e meu presente e meu futuro encontram abrigo.