Quando Lia, minha companheira, foi diagnosticada com um câncer que a medicina do homem branco não sabia como curar, cerca de dois anos atrás, minha vida mudou profundamente, apesar de nem todos ao redor perceberem. Um dos aspectos menos evidentes, talvez até secundário, dessa transformação passou a ser a minha indisponibilidade para frequentar os mesmos lugares que frequentava costumeiramente.
Por melhor que sejam as pessoas – e meus amigos são o melhor que há –, a morte, a possibilidade da morte, o adoecimento, são tabus difíceis de lidar. À medida que a notícia do câncer raro de Lia se espalhava, pude notar, nos rostos e olhares antes tão receptivos, sentimentos distintos, como pena, compaixão, medo e tristeza. Algumas vezes eu estava disposto a encará-los. Outras, não. E a solução que encontrei foi me afastar e buscar novos esconderijos na cidade, a ir a lugares que eu sabia que seria difícil de encontrar alguém conhecido.
Nesses meus esconderijos estabeleci novas relações provisórias com gente que desconhecia por completo minha história, sobretudo minhas dores. Ganhei apelidos como Alemão, Garoto e Palmeirense, e estava bom que fosse assim. Eu morava na Ponta da Praia, e para facilitar as escapadas e alimentar minha preguiça, escolhi lugares num raio de cinco quarteirões da minha casa. Nunca fui de beber sozinho. A boemia, afinal, é feita de encontros, um tipo específico de troca que envolve várias pessoas e ocorre com auxílio da leve embriaguez e da fumaça. Mas me adaptei.
Um dos cantos em que me escondia era uma padaria na Epitácio Pessoa, que ainda não foi atingida pelo raio gourmetizador. Nela, trabalha o chapeiro Barbosa, há trinta anos, atendendo os clientes com um misto de simpatia e rabugice. Eu descia até essa padoca, com a justificativa de ir comprar pão – como fazia meu avô João – e ficava ali no balcão papeando com ele, sobre o Santos, seu time do coração, e sobre a Santos que nós dois amamos.
Barbosa tem um radar único para problemas locais, e com ele aprendi um montão. Ele nem desconfiava da minha tristeza, porque eu não deixava transparecer. Dele jamais ouvi qualquer julgamento lugar-comum sobre o adoecer, mesmo quando tratamos do tema numa ocasião em que ele parecia estar mal de saúde. Confidenciou-me que já tinha passado por poucas e boas, mas estava vivo e gostava disso.
É interessante como o câncer, que é um nome genérico para um monte de doenças autoimunes cujas causas ainda são um enigma para a ciência, lastreia teorias estapafúrdias. A que mais me irrita é a versão New Age de que se trata de uma doença psicossomática, resultado de afetos ruins, cultivados pela pessoa que adoeceu. Essa vertente de pensamento é cruel, porque imputa à pessoa com câncer a responsabilidade exclusiva sobre seu adoecimento, e também abre a porta para julgamentos fáceis. Um tribunal silencioso é convocado, em conversas que quase nunca chegam até nós, nas quais emergem teorias infundadas sobre o padecimento do outro. Já presenciei outrora, como espectador, esse tipo de reunião. Não é legal.
Depois de estudar sobre o câncer, sei que aspectos psicológicos têm um peso importante no adoecimento e também nas possibilidades de cura. Mas como nos explica o filósofo Ken Wilber, que perdeu sua companheira para um câncer, e escreveu um livro lindíssimo chamado Graça e Coragem, existem várias dimensões do adoecimento, que pode ser físico, social, psicológico e espiritual. E para cada uma dessas formas, é preciso pensar um tratamento específico. É certo que, ao evocar esse assunto, estou fazendo um recorte. Ao longo destes dois anos, muita gente se solidarizou conosco, dando origem a redes de apoio e encorajamento. Lia teve todo suporte nesse sentido. Mas há esse outro lado, o do julgamento, que chega às vezes de onde menos se espera. Eu não conseguia lidar com isso, e por vezes só queria mesmo sumir.
Além da padoca do Barbosa, outro dos meus esconderijos era um botequim que fica ali na Rei Alberto, uma casinha antiga, já bastante deteriorada, que no bairro conhecemos como Bar do Seu Zé. Nele, o português José e sua esposa, Dona Alice, que vez ou outra entoava para os frequentadores lindos fados de sua terra, com sua voz abençoada, serviam as pessoas há mais de cinquenta anos.
Antes da Pandemia, passei por lá, cumprimentei Seu Zé de longe, e vi que havia uma placa de passa-se o ponto. Ontem, aproveitando a liberação parcial para circulação, com a curiosidade aguçada por conta deste texto, voltei ao local e ele está em reforma. Enfim, parece, Seu Zé resolveu descansar, depois de tanto tempo abrindo seu estabelecimento comercial cedinho e só fechando depois que o último cliente fosse embora. Com o bar, criou quatro filhos, dois deles vivendo atualmente na Europa e fez alguns amigos, não muitos, creio eu, porque jamais fez questão de ser simpático. Com seu jeito fechadão, demorou para que me concedesse alguma atenção, mas com o tempo posso dizer que chegamos até a dar algumas boas risadas juntos.
Por fim, o Sindicato Santista da Cerveja, no qual quem me atendia era o corintiano Valdir, um profundo conhecedor de futebol. Era aos domingos à tarde que costumava ir a seu bar, para assistir a um joguinho qualquer que fosse e tomar uma gelada. Valdir é gozador, já de longe saudava este palmeirense com alguma picardia, sobretudo quando meu time perdia – o que convenhamos nos últimos anos tem sido uma raridade. Gosto dele porque é uma enciclopédia futebolística, e gosta do jogo bem jogado, como eu, para além de clubismos estéreis. Aos poucos, fomos nos conectando. Chamávamos atenção um do outro sempre que algum jogador fazia algo diferente digno de nota – o que convenhamos nos últimos anos tem sido uma raridade.
Nem Barbosa, nem Seu Zé, nem Dona Alice, nem Valdir sabiam muito de mim, mas foram essenciais para que eu mantivesse alguma sanidade nessa árdua travessia que é cuidar da pessoa que você mais ama enquanto ela convalesce.
A eles, os anfitriões dos meus esconderijos, minha gratidão.