Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Sou filha de Rodrigo, filho de comerciantes portugueses. Meu pai, apesar de sempre ter colaborado no comércio da família, entrou cedo no conservatório Lavignac, em Santos, e se apaixonou pela música. Foi um grande maestro e pianista. A música, mais especificamente o Lavignac, o fez conhecer Maria Fernanda enquanto ela ainda era criança. Fernanda também respirava música e arte.

Graças a esse encontro de vidas, estou aqui. Eu, Juliana, que também fui ao Lavignac quando tinha cerca de cinco anos, passei a infância e a adolescência entendendo que, além das minhas atribuições do colégio, também tinha as aulas do conservatório.

Passeando pelas minhas doces memórias, me vem logo tia Adriana na cabeça que, com seus pulos, danças e manejos de uma flauta doce, me musicalizou.

Depois me vem a professora Ana Maria e as aulas de piano. Eu não era tão boa aluna, mas me esforçava para tocar o instrumento com a alma. Ambas as mestras deixavam claro que a música não tinha que ser lida em uma partitura, deveria ser sentida com o coração.

Logo o caminho me fez cruzar com meu segundo pai, Geraldo, músico e médico. Ele e minha mãe criaram um grupo vocal que se chamava Faz de Canto.

Minha primeira experiência com o canto ocorreu aos 14 anos e foi paixão ao primeiro contato. Passei dos 14 aos 25 anos envolvida em três coros, cantando e me descobrindo como pessoa. Tenho um grupo de amigos da música e nos denominávamos, naquela época, como “cantores eternos”, porque a gente cantava simplesmente o tempo inteiro! O entusiasmo era tão grande que estive a minha adolescência inteira acordando cedo aos sábados de manhã para cantar, cantávamos das oito da manhã às cinco da tarde.

Ao terminar a faculdade de medicina acabei me afastando um pouco deste universo. Na residência médica é muito difícil ter espaço para outras necessidades. É um período de grande imersão e conhecimento profissional. Mas, sempre que podia, fugia para cursos de laboratórios corais. Cheguei a voltar a cantar durante a residência de oncologia, mas infelizmente o tempo para essa atividade foi se encurtando.

Mas isso não é um problema. Porque quando preciso, só olho para dentro de mim e está tudo lá. Meu pai, tia Adriana, Ana Maria, Coraluni, Faz de Canto, o Coral Zanzalá. Essa minha história com a arte me faz ser quem sou. E é extremamente viva! Me faz pensar que tudo e todos que nos tocam em vida vivem dentro de nós.

“A arte existe porque a vida não basta”, diz Maria Bethânia, lembrando frase do poeta Ferreira Gullar. E é isso mesmo. A arte é essência da vida, é sentimento, é emoção, é delicadeza. Ela desperta em nós as fragilidades, nos ampara, nos faz conhecer o mundo e culturas.

O poeta Zack Magiezi diz que “os médicos curam os doentes e os artistas curam os sãos”. Achei isso tão sábio! É isso mesmo, a medicina cuida das doenças, enquanto a arte cuida dos saudáveis! E como todos nós, estando doentes ou não, precisamos ser cuidados. Nietzsche também dizia “a arte existe para que a realidade não nos destrua”.

Tenho certeza de que nesta quarentena, a válvula de escape de todos os que podem é a arte: filmes, músicas, lives de shows, livros. Nos últimos três meses de isolamento social a procura pelos serviços de streaming cresceu, assim como a busca por conteúdo ao vivo na internet.

Isso que nos faz ter um respiro durante este momento ímpar de isolamento social pela pandemia do coronavírus. Esses recursos ajudam as pessoas a ficarem em casa. Os artistas nos ajudam a manter o equilíbrio. A cultura se mostra mais uma vez como um setor importante.

Os artistas podem não estar na linha de frente, mas é a arte que está ajudando as pessoas a manterem a mente sã. E essa mesma categoria vem sendo desprezada, e está sofrendo as consequências do isolamento sem políticas de apoio do poder central brasileiro. Falar de arte também é falar de luta, do poder questionador que ela invoca! Por isso, ainda é perseguida em regimes autoritários antidemocráticos. Ela é uma forma de reivindicar insatisfações sociais, de denunciar abusos. Ajuda a transformar a sociedade e a criar novas perspectivas.

Sendo assim, a importância de apoiarmos o Projeto de Lei 253 (PL 253), que pede ajuda emergencial para artistas. Prevê uma renda básica para trabalhadores da cultura e subsídio para os espaços culturais serem preservados diante da crise da Covid-19.

E a arte também pode ajudar a cuidar do corpo físico! A Musicoterapia, por exemplo, é uma área importante e, por isso, valorizada no cuidado paliativo. A música, como recurso terapêutico, provoca a percepção visual, é uma atividade motora sensorial e auxilia na expressão de diferentes emoções. Possibilita a conexão com conotações ligadas à área afetivo-emocional.

O estudo “A música no alívio da dor em pacientes oncológicos”, feito no Hospital Israelita Albert Einstein, acompanhou dez pacientes portadores de câncer que apresentavam dor crônica e, após as sessões de música, houve alívio da dor, além de relaxamento, evocação de lembranças pessoais e esquecimento dos problemas. A conclusão do estudo diz que “os pacientes perceberam redução da dor, da ansiedade e começaram a acreditar na música como forma de terapia”.

Recomendo um documentário chamado “Alive Inside”, que mostra o impacto da música como terapia para pacientes com demência. É incrível como há o resgate interior, como o afeto provocado pela lembrança os conecta com o mundo exterior, permitindo inclusive diálogos e conversas coerentes. O documentário está disponível no YouTube para quem quiser ver.

Meu avô materno, o vô Milton, teve um extenso acidente vascular cerebral (AVC) que comprometeu a movimentação de seu lado direito do corpo e sua fala. Ele compreendia o que falávamos com ele, mas sua resposta era invariavelmente sempre a mesma, emitia a vocalização “ô”. Fazia fonoterapia, mas nunca obtivemos avanço nesse quesito. E, de forma surpreendente, ele conseguia cantar a música “ Carinhoso” de Pixinguinha. Falava claramente todas as palavras e nos reconectávamos com ele ao articular “meu coração não sei por quê. Bate feliz quando te vê”.

Falar de arte é falar também de tabus como os temas de luto e morte. Há uma extensa lista literária que usa histórias para falar destes temas tão evitados no nosso cotidiano: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Os Sertões”, “Vidas Secas”, “Morte e Vida Severina”. Assim como músicas belíssimas, como “Não tenho medo da morte”, de Gilberto Gil, que elenca a diferença entre a morte e o morrer.

Sempre que é preciso reavivar a humanidade, contestar as escolhas, acolher as dores, devemos nos apegar na poesia, música e arte. E devemos aumentar a consciência de que todos nós somos peças fundamentais para exigir a valorização da cultura, um dos nossos bens mais preciosos!