O temporal na região causou a morte de 45 pessoas - Foto: Fernanda Luz/Govesp

As chuvas intensas que castigaram a região no início de março provocaram a morte de 45 pessoas, sendo 34 em Guarujá, oito em Santos e três em São Vicente. Além disso, os deslizamentos em áreas de morro na região deixaram um rastro de destruição e desalento, principalmente, em relação às famílias que perderam parentes, casas ou ambos.

A questão que se levanta é a seguinte: Quem garante que tragédias dessa magnitude não aconteçam novamente? Em entrevista ao Folha Santista, a geóloga Cassandra Maroni Nunes, ex-presidente da Administração Regional dos Morros em Santos, além de mestre em Planejamento e Gestão do Território, cita a intensidade surpreendente das chuvas de 2 e 3 de março. No entanto, ela destaca que o fenômeno era previsível.

Cassandra critica o que chama de falta de envolvimento das autoridades máximas dos Executivos locais. “Faltam respeito ao que a ciência já avançou para se enfrentar essas situações e trabalho preventivo e corretivo cotidiano no dia a dia dos morros e encostas. Falta, ainda, planejar as obras e medidas, em conjunto com a população submetidas ao risco”, analisa.

Ela, que é geóloga licenciada do Instituto Geológico do Estado de São Paulo, aponta falhas na condução de políticas do poder público. “Eu julgava que já tivesse terminado a era do famoso ‘Efeito Urubu’ dos governantes, que sobrevoam a ‘carniça’ de helicóptero, depois das mortes, e compungidos colocam a culpa ou nas próprias vítimas ou no campeonato de dados de chuva ‘sempre batendo recordes’, de acordo com as conveniências de ocasião”, ressalta Cassandra, que também foi vereadora pelo PT por quatro mandatos na Câmara de Santos, secretária do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento e secretaria de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente.

“Em temos de pandemia, ter uma casa segura é imprescindível”, diz Cassandra – Foto: TV Senado

Folha Santista: Como você observou a tragédia provocada pelas fortes chuvas do início do mês na Baixada Santista?
Cassandra Maroni Nunes:
 As ocorrências foram tantas e de tal dimensão que só 15 dias depois de escavar incessantemente, os bombeiros conseguiram achar o corpo da última vítima. Foi realmente algo de grandes proporções deflagrado pelas chuvas de 2 e 3 de março. Depois de ter trabalhado na linha de frente por uma década e, mesmo depois, como vereadora, não deixei de acompanhar com preocupação o período chuvoso por conhecer bem a realidade dos morros de Santos. Nem de me espantar com a liberdade dada para o crescimento da ocupação em áreas impróprias. Mesmo para os geólogos experientes, esse foi um evento muito sério. Previsível, entretanto, para quem estuda séries históricas de chuvas e mapeou o risco de escorregamentos em encostas. Foi algo extremo, porém, não fora do que já aconteceu outrora. Na noite do dia 2 de março, por volta das 23 horas, minha aflição, compartilhada com antigos companheiros da equipe da finada Regional dos Morros, através de mensagem, foi chegando a pânico. Sabíamos o que iria acontecer: era uma chuva “derrubadeira” e a saturação do solo já era elevada. A partir daí as principais ocorrências se deram, a destruição e as mortes começaram. Vimos, então, com extrema angústia e espírito de solidariedade a dor das famílias, o esforço das equipes de Defesa Civil e bombeiros e o retardo na resposta das autoridades máximas municipais.

Folha Santista: Autoridades políticas municipais e estaduais creditaram a tragédia ao excesso de chuvas naquele período. É fato que choveu muito mais do que o esperado, mas não é cômodo responsabilizar apenas a natureza pelo que ocorreu?
Cassandra: 
Desde o verão de 1989, quando fizemos estudos sérios no Instituto Geológico junto com o IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), e se definiu um Plano Preventivo para Escorregamentos na Serra do Mar, nenhum dirigente, técnico, servidor, morador têm mais o direito de culpar as chuvas por desgraças e destruição. Provamos que cruzando dados do meio físico, dados de séries históricas de pluviosidade, previsão meteorológica e observações das manifestações das encostas, é muito possível nos anteciparmos a esses eventos, fazendo remoções preventivas para locais seguros, previamente determinados, e de amplo conhecimento dos envolvidos. Eu julgava que já tivesse terminado a era do famoso “Efeito Urubu” dos governantes, que sobrevoam a “carniça” de helicóptero, depois das mortes, e compungidos colocam a culpa ou nas próprias vítimas ou no campeonato de dados de chuva “sempre batendo recordes”, de acordo com as conveniências de ocasião. A chuva foi rara, sim. Porém, não foi a primeira na história, e o Plano Preventivo de Defesa Civil, operado com responsabilidade e autoridade dos prefeitos, dá cabo dessas situações.

Folha Santista: Em sua avaliação, é correto dizer que houve conivência, indiferença ou, no mínimo, incompetência por parte das autoridades municipais?
Cassandra:
 Impressionou-me muito, nesses dias, em contato com defesas civis e moradores atingidos em diversas cidades da região, a solidão desses entes. Os moradores ficam confusos nos dias subsequentes à tragédia, desorientados e impotentes. As defesas civis, que já estavam trabalhando no limite de sua capacidade física dias antes do fatídico episódio pluviométrico, quedam sós nas suas angústias, sem autoridade para mandar nos prefeitos e secretários, nesse momento em que eles, geralmente, sabem o que deve ser feito. Falta envolvimento das autoridades máximas dos Executivos locais, respeito ao que a ciência já avançou para se enfrentar essas situações e trabalho preventivo e corretivo cotidiano no dia a dia dos morros e encostas. Falta, ainda, planejar as obras e medidas, em conjunto com a população submetidas ao risco. Há muito “faz de conta que estou fazendo” e omissão, em suma.

Folha Santista: Quais as ações que devem ser tomadas para evitar que outras tragédias com mortes se repitam ou, pelo menos, para minimizar os danos?
Cassandra: Política habitacional na região metropolitana para prover moradias seguras e decentes para as famílias; obras de infraestrutura urbana, especialmente ordenando as águas de telhado e das ocupações; controle da ocupação, indicando onde e como pode construir, e coibindo a construção nas áreas em que a Carta Geotécnica e os técnicos dizem que não deve; revegetando com espécies adequadas as áreas impróprias; a ação de autoproteção de quem vive em área de risco não é de exclusiva responsabilidade do poder público, depende muito das ações de quem vive em risco. Entretanto, cabe aos prefeitos e secretários municipais, sob o comando dos coordenadores de Defesas Civis liderarem essas ações; é imperioso operar, rigorosamente, durante o período mais chuvoso, que na Baixada Santista vai de dezembro a abril, os Planos de contingência. Não basta a declaração formal e burocrática de estados e níveis do Plano se não for seguido de ações concretas em cada nível e do envolvimento direto do prefeito e secretários; falta ao Congresso regulamentar a Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil; falta responsabilizar, civil e criminalmente, as omissões que levam a mortes e danos.

Folha Santista: Você presidiu a Administração Regional dos Morros em Santos e foi vereadora por quatro mandatos na cidade. O que mudou na questão dos morros daqueles tempos para cá?
Cassandra:
 Em 1989, poucas cidades eram dotadas de Defesa Civil. Nesse aspecto houve um avanço extraordinário em nossa região metropolitana, pois todos os nove municípios são dotados de equipes bem preparadas (nem sempre respeitadas ou prestigiadas como merecem). Quando começamos um trabalho pioneiro em Santos, em 1989, recebemos um dos primeiros computadores da administração municipal. A impressora era tão barulhenta que irritava todos na AR Morros, mas foi o máximo. Recebemos, também, o primeiro aparelho celular da prefeitura, doado pela Ericsson, em troca da autorização para implantar antena no Morros São Bento. Estava no início a operação do Radar Meteorológico de Ponte Nova, este ficava mais fora do ar que operando. Do ponto de vista tecnológico mudou tudo: os moradores têm celulares, a Defesa Civil tem os mais modernos recursos tecnológicos, as encostas estão eletronicamente começando a ser monitoradas, a previsão meteorológica do Siasp é altamente confiável. O que mudou para pior foi o entrelaçamento entre a população das áreas de risco e os órgãos da prefeitura, com a extinção dos voluntários treinados da população, os Nudecs (Núcleos Comunitários de Defesa Civil). Há um divórcio entre a subprefeitura dos morros e outras secretarias e as preocupações de segurança da Defesa Civil. É só ver as obras que são autorizadas nos morros ou em seu sopé, sem respeitar a Carta Geotécnica dos Morros de Santos. Os recursos injetados nos morros são ínfimos e as obras são episódicas ou clientelistas, não levando em conta, por exemplo, o Plano Municipal de Redução de Riscos, atualizado em 2012 pelo IPT, em conjunto com a Defesa Civil de Santos. Falta planejamento, consulta aos interessados, recursos, amor e carinho, comprometimento com os moradores submetidos a risco geológico. Falta acreditar que com empenho e recursos é possível salvar vidas, construir casas, drenar e urbanizar os assentamentos. É sempre bom lembrar que, em temos de pandemia, ter uma casa segura é imprescindível. Onde farão quarentena as centenas de famílias que tiveram suas casas atingidas?