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Apesar de grande parte da classe médica discordar do uso da cloroquina no tratamento de pacientes com Covid-19, a prefeitura de Santos decidiu adquirir 50 mil comprimidos do medicamento. A compra pôde ser feita sem licitação dada a urgência, para uso nas unidades de saúde da cidade, durante a pandemia do coronavírus.

Mesmo sem comprovação da eficácia do medicamento no tratamento da Covid-19, a utilização da cloroquina foi defendida por Valter Makoto, médico nutrólogo e secretário adjunto de Saúde da prefeitura de Santos. Ele revela que a aquisição ocorreu há dois meses.

“A nota da compra foi fechada no dia 14 de abril. A cloroquina, pelos órgãos fiscalizadores da medicina, não é proibida, não é um medicamento clandestino, tanto é que o Conselho Federal de Medicina e o Ministério da Saúde aprovam”, argumenta Makoto.

Arthur Chioro, médico sanitarista, professor universitário, ex-secretário de Saúde de São Bernardo e de São Vicente e ex-ministro da Saúde, recrimina a medida.

“A cloroquina e a hidroxicloroquina são medicamentos usados há muito tempo por médicos, para indicações específicas e com manejo criterioso. Impor seu uso para a profilaxia ou tratamento de casos de Covid-19, sem eficácia comprovada, e com enorme potencial de causar reações adversas graves e até fatais, é uma atitude irresponsável e criminosa”, avalia Chioro.

Karina Calife, médica sanitarista, professora, mestre e doutora em Medicina Preventiva, tem opinião semelhante. Para ela, o uso desses medicamentos não tem nenhuma evidência científica que os qualifique. Muito pelo contrário.

“Uma das apostas iniciais era a utilização por conta dos seus efeitos imunomodulatórios, para diminuir a inflamação, para poder cuidar um pouco desse momento do desenvolvimento mais agudo, da fase mais inflamatória da doença. No entanto, já se percebeu que esse efeito não existe. Não dá para usar hidroxicloroquina nem a cloroquina em pacientes graves. Está demonstrado e até é aceito mesmo pelas pessoas que defendem seu uso hoje”, afirma Karina, integrante da equipe de pesquisa de Soroprevalência do SARS-Cov2/Covid-19 na região da Baixada Santista (Epicobs) e especialista em Gestão da Clínica.

Outra questão, ressalta a médica, seria a utilização em pacientes mais leves, como opção para profilaxia ou no início de sintomas leves. “Também já fizeram esse estudo, saiu um artigo, há 15 ou 20 dias, no BMJ (conceituada publicação britânica sobre medicina), que demonstra que não há nem diminuição da replicação viral, nem melhora das condições clínicas naqueles pacientes que utilizaram a cloroquina e a hidroxicloroquina”, acrescenta Karina.

Novas teorias

Makoto considera que, de fevereiro para cá, houve inúmeros medicamentos usados no combate à pandemia. “No decorrer dessas tentativas, algumas sobrevivem, outras são proscritas. No início, a cloroquina era o mais utilizado. Claro que, no caminhar, com o conhecimento da ciência, novas teorias vão surgindo e aí você começa, realmente, a ter mais cautela no que se refere a fazer novas compras. Para o primeiro instante, nós tínhamos que deixar à disposição da classe médica”, prossegue.

“No momento, não há previsão de novas compras desse tipo de medicamento”, disse Valter Makoto, secretário adjunto de Saúde – Foto: Divulgação/PMS

O secretário adjunto de Saúde da prefeitura classifica a iniciativa como “uma compra básica de preparo”. “Nós deixamos reservados em torno de 50 mil comprimidos para ter o primeiro atendimento. Em termos de saúde pública, a gente tem que trabalhar pela prevenção. Não esperar acontecer para depois sair correndo atrás dos medicamentos”, avalia.

“Vamos supor que 20% da população necessitasse de internação sob medicação, o que seria em torno de 90 mil pacientes, tomando por base a população de 450 mil habitantes de Santos. Não havia necessidade, pelo cálculo inicial, de se basear nesses 90 mil pacientes que seriam contaminados, ou seja, não seria preciso comprar um lote de medicamentos em grande quantidade para 90 mil pacientes”, justifica Makoto.

Nova compra

De acordo com o secretário adjunto, não está nos planos da prefeitura a aquisição de um outro lote de cloroquina. “No momento, não há previsão de novas compras desse tipo de medicamento”, resume.

“Cronologicamente, à medida em que vão ocorrendo os fatos, em termos de ciência, você tem que começar a ter mais cautela. Se você tem novas informações, vai evitando fazer novas compras. Porém, na medicina isso é dinâmico. Se outros estudos vierem, como estão fazendo, e chegarem à conclusão que o uso da cloroquina é positivo, nós acataremos os novos estudos, o que significa que a aquisição poderá vir. Mas não tenha dúvida que o Grupo Técnico (profissionais de Saúde que atuam no combate ao coronavírus), criado recentemente, participará da decisão. A prefeitura não tem feito nada sozinha. Então, pedindo a opinião do Grupo Técnico a gente erra menos”, analisa.

Efeito colateral

Karina Calife entende a questão de outra forma. Para ela, tanto a cloroquina como a hidroxicloroquina apresentam um efeito colateral ligado à questão cardiovascular, ou seja, desenvolvem arritmias cardíacas.

“Há muita coisa para ser estudada ainda e não faz o menor sentido a utilização de uma medicação que tem toxicidade e efeitos colaterais”, afirmou Karina Calife – Foto: João Quesado

“Esses efeitos podem ser, inclusive, muito graves e chegar à parada cardíaca. Portanto, não faz sentido a utilização dessa medicação. Ainda mais se a gente pensar que os pacientes que vão agravar são aqueles que já têm algumas complicações anteriores, o que a gente chama de comorbidades, em especial hipertensões, doenças cardíacas, diabetes, enfim, estamos falando de um grupo que deve ser olhado com um pouco mais de delicadeza”, explica a sanitarista.

“Se a gente pensar, também, que esses medicamentos têm sido usados articulados com outros, ou seja, em junção com azitromicina, por exemplo, que também tem efeitos colaterais, especialmente cardiológicos, e sem nenhuma evidência de melhora da situação clínica, então, não faz o menor sentido a gente usar. Isso teria de estar vinculado a protocolos de pesquisas e estudos”, argumenta Karina.

Ela destaca que existem outros medicamentos, que têm demonstrado evidências muito melhores, como a heparina, os anticoagulantes, usados antes da fase mais grave, naqueles pacientes que começam a ter complicações respiratórias.

“Há muita coisa para ser estudada ainda e não faz o menor sentido a utilização de uma medicação que tem toxicidade e efeitos colaterais. Ela tem um papel importante em doenças autoimunes, no lúpus, nas artrites reumatoides ou na malária. Foi testada para isso, passou por todas as fases. Para isso ela foi testada, com doses específicas, com tempo específico e sem a associação com azitromicina, por exemplo. Então, realmente, os resultados e as evidências são completamente contrários para Covid-19”, reitera Karina.

Sem licitação

A aquisição dos 50 mil comprimidos de cloroquina pela prefeitura de Santos custou aos cofres públicos R$ 40 mil, segundo Valter Makoto.

Ele explica que a compra estava isenta de licitação, porque o governador do estado, João Doria (PSDB), já tinha decretado estado de calamidade pública, em 20 de março, em função da pandemia do coronavírus. “Com isso, as compras emergenciais poderiam ser feitas dessa forma. Nada irregular”, diz.

Questionado sobre qual o critério usado para escolher o laboratório responsável pela manipulação dos comprimidos, Makoto diz que a opção foi feita pela “Flora Medicinal Farmácia de Manipulação”.

“Quando começou a surgir a Covid, a cloroquina estava sendo um medicamento de foco, mais em evidência. Então, vários municípios da Baixada fizeram essas compras e nós acompanhamos, porque nos laboratórios tradicionais estava em falta. Por isso, outras cidades, assim como Santos, compraram dessa farmácia. É claro que fizemos um levantamento de algumas farmácias que pudessem fornecer e esta era a que estava fornecendo para a maioria dos municípios da Baixada”, conta o secretário adjunto de Saúde.

Makoto nega que a compra do medicamento tenha sido uma decisão unicamente dele. “Claro que não. Eu conversei com o chefe de emergência, que tem o controle das UPAs, dos hospitais, para abastecermos essas unidades, as quais fossem necessárias o uso da medicação. Então, não foi por iniciativa própria, mas, sim, por uma troca de ideia”, diz.

“Naquela época não existia ainda o Grupo Técnico. Então, foi uma conversa mais diretamente com o responsável pelas unidades hospitalares e unidades da UPA. Posteriormente a isso é que surgiu o Grupo Técnico. Tudo tem uma cronologia. Nada foi feito por conta própria”, acrescenta o secretário.

Resultados

Em relação ao saldo obtido com o uso da cloroquina em pacientes com Covid-19 em Santos, Makoto afirma que muitos obtiveram resultados positivos, ou seja, melhoraram e tiveram alta. Porém, muitos outros não tiveram resultados.

“Não dá para chegar e falar que foi exatamente aquilo ou se foi uma conjunção daquele medicamento, mais o antibiótico, mais o anti-inflamatório. É um momento difícil de ter um denominador”, argumenta.

Pressão

Makoto também nega, veementemente, que exista pressão para que os médicos das unidades municipais de saúde utilizem a cloroquina em pacientes com a Covid-19.

“Jamais fizemos pressão sobre os médicos e nem podemos partir para esse tipo de iniciativa. Os médicos têm a sua liberdade de prescrição e a qualquer momento podem modificar. Mas o importante, a gente como gestor de Saúde, é poder fornecer os medicamentos que são utilizados na tentativa de socorrer os pacientes”, diz ele.

“Os médicos têm a obrigação de observar os princípios éticos e rejeitarem, contundentemente, a imposição para prescrevê-los”, destacou Arthur Chioro – Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O ex-ministro da Saúde, Arthur Chioro, por sua vez, acha que os profissionais de Saúde precisam tomar uma posição firme em relação ao não uso do medicamento.

“Os médicos têm a obrigação de observar os princípios éticos e rejeitarem, contundentemente, a imposição para prescrevê-los. Não se pode admitir qualquer atitude de conivência com esse crime contra a sociedade brasileira. Os gestores, em todas as esferas de governo, que se precipitaram e desperdiçaram recursos públicos devem arcar com as responsabilidades pela desastrosa conduta administrativa. Além disso, não têm o direito de ‘desovar’ o estoque de medicamentos e colocar em risco a saúde da população”, acrescenta o sanitarista.

Para Karina Calife, não faz sentido que, na política pública, se coloque esse medicamento à disposição, sem que se tenha a assinatura do Ministério da Saúde. “É um protocolo que pede para que o paciente assine e se responsabilize pelos riscos, é o uso de um medicamento que o Conselho Federal de Medicina autoriza, mas não recomenda. É extremamente ambivalente”, ressalta.

“Minha opinião, como profissional de Saúde, como médica, como pesquisadora é pela não utilização da cloroquina e da hidroxicloroquina para a Covid-19, muito menos associada à azitromicina. A gente precisa estar baseada nas melhores evidências técnicas e científicas para o enfretamento da pandemia”, completa Karina.