Neste ano, uma data interrogará a consciência dos eleitores sobre o próximo governo de suas cidades. O tema eleitoral estará em todo o país no centro da maioria das conversas sobre as nossas cidades, e entre os santistas não será diferente.
Será muito bom se os eleitores vierem a se colocar nesses debates com atenção não apenas para os predicados pessoais de candidatos, de seus currículos e inventários de feitos – material que normalmente compõem, junto com denúncias de corrupção, os trailers de nossas campanhas –, mas que levem em conta também as posições, ideias e propostas dos pretendentes sobre os fatos políticos que marcam a atualidade do país.
Essa abordagem é importante porque nosso senso comum nos leva a associar eleições com democracia e a tratar questões locais importantes deslocando-as, completamente, do plano geral da política. Quando efetivamente, pura e simplesmente, não é bem assim que, na prática, a vida toca. Visto que a história recente do país e a não tão recente assim exibem fatos demonstrativos de que nem sempre essas coisas – eleições e democracia – se dão bem, a ponto de andarem juntas.
Assinalo isso porque os municípios brasileiros, como de resto as demais instituições do Estado, já se ressentem do golpe parlamentar-mercado-financista-midiático-judiciário desfechado contra o governo Dilma Rousseff. De lá para cá, a qualidade de vida das pessoas, cujo cotidiano é vivido no plano real das cidades, piorou muito, por consequência direta da destruição de políticas públicas promovida pelo governo Bolsonaro. Políticas que, até então, acudiam a população, principalmente seus setores socialmente mais vulneráveis.
E veja que essa realidade histórica do entrelaçamento do quadro nacional e situação local vem de mais longe. É só conferir. Tomemos apenas 1964, quando um golpe de Estado cívico-militar derrubou o presidente João Goulart e impôs ao país duas décadas de sangrenta ditadura militar.
Durante esse período, os santistas perderam o direito de eleger o seu prefeito, e a cidade foi governada por interventores indicados pelo general-chefe de plantão da ditadura militar. Nesse período, prefeitos eleitos foram cassados. Esmeraldo Tarquínio, consagrado pela vontade popular, foi um deles. Deputado estadual, formado em Direito, negro, orador poderoso, destacado opositor do regime militar, eleito em 1968, não chegou a tomar posse, pois teve seu mandato de deputado estadual e seus direitos cassados pelo regime militar.
Pois então, se essa história de golpe de Estado já é perturbadora para o cidadão comum de qualquer município brasileiro, imagine para nós, eleitores de uma cidade que, durante a ditadura militar, foi dada como área de segurança nacional, com proibição de a população eleger seu prefeito.
A esta altura imagino que, certamente, alguém já pode estar contraponteando este pequeno e talvez incauto artigo, para dele reclamar de proselitismo incabível, ou dizer de que não passa de um conjunto de meras pregações doutrinárias, que não leva a lugar nenhum, a não ser ao bloqueio do debate de temas imediatos e primordiais para a melhoria da vida real do cotidiano da população.
Nesse caso, então, a tanto, me caberia dizer que é esse o debate que penso seja preciso superar, mediante a demarcação de propostas na luta de ideias e por projetos concretos para a cidade, forjados nas totalidades amalgamadas do momento nacional e das justas exigências sociais, que levantam no plano da disputa local. Isto é, na dimensão complexa da totalidade da realidade que nos cerca. Em última análise, se trata de se evitar a despolitização da política.
As pessoas precisam ter a compreensão crítica da rede de interesses e barganhas que estimula as ambições egoísticas de uma minoria poderosa, que se encastela no topo das relações entre o poder econômico e os que governam o Estado, para melhor se organizarem e se mobilizarem na busca de seus direitos.
A despolitização das exigências de programas e ações que satisfaçam a necessidade das pessoas por alimentos, remédios, escola, emprego e moradia, somente contribui para que esses objetivos não sejam alcançados, ou sejam realizados insatisfatoriamente para a maioria da população, e isso é o que deve ser evitado. Ainda mais em tempos de governo de extrema direita, como é o de Bolsonaro, que vai se notabilizando como o protetor de bancos e banqueiros e como inimigo mortal da aposentadoria e dos empregos dos trabalhadores.
Defendo que essa dimensão da imediatidade da importância de questões básicas à existência digna da maioria da população deva estar no debate e na elaboração de eleitores, partidos e candidatos. Porém, sem que se esconjure a realidade dada no plano nacional, na qual se vê que o país vai derretendo sob o desgoverno do capitão, que se destaca por suas relações sociais com milicianos (e sabe-se lá, relações de outros tipos), por seu afeto público por torturadores, pela promoção da entrega das riquezas e interesses nacionais, como a Embraer, o Pré-Sal, a Base de Alcântara, tudo na mais total e desprezível submissão em favor dos governantes e gestores do capital dos EUA, com gestos da mais pura e sincera adoração patriótica à bandeira deles.
Contudo, de todas as políticas desse desgoverno, a que mais diretamente fala à realidade de nossas cidades, sem dúvida, é a que sai da agenda neoliberal de Bolsonaro, ditada por seu ministro Paulo Guedes. Sim, pois por via dela se degolou o sistema público de Previdência Social, liquidando-se, assim, com a aposentadoria dos trabalhadores e se submete a população a filas enormes nas portas das agências do INSS.
No fundo, as reformas visam tão somente a transferência de um volume gigantesco de recursos financeiros do orçamento público da União, Estados e Municípios para o controle dos bancos. Isto é, o dinheiro arrecadado a duras penas do suor dos trabalhadores e contribuintes passa às mãos privadas e gananciosas do chamado capital improdutivo, um mundo à parte, para poucos, no qual habitam e reinam os grandes predadores da soberania do Brasil, dos direitos e dos meios para uma vida digna da população.
Por isso, caro eleitor, nós, o povo, não podemos nos agachar à censura ou autocensura nesse debate público que se inicia. O momento nos exige o compromisso com um debate franco e profundo sobre visões e acontecimentos políticos que dividiram a sociedade brasileira. Pois é a partir daí que se poderá, efetivamente, se articular planos de governo, programas e ações comprometidos com o atendimento às necessidades da população e respeito a sua dignidade.
Nesse sentido, me permito um testemunho. Lembro-me da fala de David Capistrano, durante a primeira reunião do secretariado da prefeita Telma de Souza. Ele disse: “Em tempos de carestia e abandono social da população, um governo como o nosso, que se pretende democrático e popular, deve privilegiar em seus programas e ações a distribuição de alimentos e remédios para a população”.
E, de fato, aquele governo de Telma, pôs um divisor de águas, um antes e depois, na história da administração pública de Santos, no que se refere à solidariedade e proteção social do povo. A rede de policlínicas de saúde, alimentos nas escolas, as casas de acolhimento a moradores de rua, a defesa dos empregos dos portuários (doqueiros), que foram readmitidos, por força da tomada de posição da liderança política da prefeita e de seu governo, são alguns desses feitos marcantes.
Hoje, as instituições democráticas e a vida social estão sob o fogo da força de extrema direita que governa o país e de forças protofascistas que o apoiam. Vive-se tempo de proibições de livro, de controle intelectual de professores em sala de aula, de perseguição física a pessoas em razão de sua orientação sexual, nos quais as polícias militares, que sempre foram brutais, agora matam escancaradamente, com apoio explícito de governadores, como se vê no Rio e em São Paulo, atingindo, especificamente, os locais de moradia e bairros da população mais pobre, nos quais crianças e jovens constituem a maioria das vítimas, vide Paraisópolis.
E tudo isso, enquanto Bolsonaro promove sua imagem de adorador de Trump, através de vídeos em que aparece assistindo a discursos do presidente estadunidense, difunde ao mundo a imagem do Brasil de país inimigo do meio ambiente, o que facilita, inclusive, o protecionismo dos países ricos contra produtos do setor agropecuário brasileiro. Governo inimigo também da liberdade pública, com seu secretário da Cultura declamando, como seu, o discurso nazista de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler.
Bem, mas é nas cidades, junto aos setores mais populares da população, que se vê mais claramente o resultado perverso dessa política nacional, seja pelo fato de que aumentam os contingentes de pessoas em vulnerabilidade alimentar, isto é, famélicas; de desempregados, o que faz com que famílias sejam postas nas ruas, por não terem mais como pagar aluguel; que, cada vez mais, as pessoas sejam obrigadas a se submeter à precarização de empregos tipo Uber ou a tentar sobreviver, oferecendo a venda de bolos em pote pelas esquinas e bares com mesas nas calçadas.
Igualmente, em grau mais terrível ainda, se verifica a gravidade da situação de desprovimento de qualquer direito, pelo fato do desmonte da rede e equipamentos de atendimento à saúde, principalmente, dos mais pobres. Este dado lamentável e revoltante da destruição da saúde pública, em Santos já aponta para o aumento da mortalidade infantil, ressurgimento da tuberculose e para a falta de vacinas para as crianças.
Eis, assim, apresentadas as razões e questões que, realmente, devem contar para um debate crucial acerca do futuro de nossa cidade. Que a sua ordem se imponha para além do pragmatismo de qualquer cálculo eleitoral, em direção à contribuição de um processo eleitoral que some na construção de uma democracia efetiva e de um convívio social de respeito ao direito do povo buscar a realização de uma vida digna.