Por Martina Salvo*
O caso de Gisèle Pelicot, revelado recentemente na França, é um lembrete assustador e revoltante da violência silenciosa que muitas mulheres enfrentam. Durante dez anos, ela foi drogada por seu próprio marido, Dominique, e violentada sexualmente por ele e por dezenas de homens sem sequer ter conhecimento.
O crime veio à tona por acaso, quando Dominique foi preso por tirar fotos por baixo das roupas de mulheres num shopping. No celular dele, a polícia encontrou registros dos abusos cometidos contra a sua própria esposa.
Esse caso é uma afronta à dignidade humana e escancara a crueldade de indivíduos que, sob a aparência de homens “comuns”, participam de crimes tão horrendos.
O mais impressionante na história de Gisèle não é apenas o grau de sofrimento a que foi submetida, mas a maneira como ela escolheu reagir. Em vez de esconder-se por vergonha ou medo, como tantas vítimas são pressionadas a fazer, Gisèle manteve a cabeça erguida e tomou uma decisão ousada: ela optou por um julgamento aberto, para que todos pudessem ver as faces dos acusados. Em vez de ser silenciada, ela exigiu visibilidade, mesmo que isso significasse reviver o seu trauma publicamente.
Os homens envolvidos nesse caso não são monstros caricatos, mas pais, filhos, avós, colegas de trabalho. Homens aparentemente comuns, que convivem em sociedade sem levantar suspeitas. Isso é o que mais assusta.
A violência, muitas vezes, não está limitada a figuras isoladas ou marginalizadas. Ela permeia todas as camadas sociais e se esconde por trás de rostos familiares.
A revelação desse crime nos obriga a perguntar: quantos outros Dominique existem por aí? Quantos mais abusam da sua posição de confiança para violentar e explorar mulheres, seja nos seus próprios lares ou em outros ambientes?
No Brasil, a realidade também é alarmante. Segundo o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foi registrado um estupro a cada seis minutos no país. Esses números são assustadores e indicam que, para muitas mulheres, o perigo está mais próximo do que imaginam. Como o caso de Gisèle nos mostra, o agressor pode ser alguém em casa, alguém que a vítima jamais imaginaria que lhe pudesse fazer mal.
O que esse caso nos ensina é que a violência contra a mulher é uma questão universal e transversal. Não importa a classe social, o país ou a idade da vítima. Mulheres em todo o mundo enfrentam ameaças diárias à sua segurança, seja por parte de desconhecidos ou, como Gisèle, por parte de quem deveria protegê-las.
Essa realidade nos obriga a questionar: até quando? Até quando ser mulher será um ato de coragem?
Gisèle representa todas as mulheres que, em algum momento, foram silenciadas, violentadas ou traídas por aqueles em quem confiavam. Sua escolha de enfrentar seus agressores num julgamento público é um ato de resistência, uma forma de recuperar a sua voz e expor os rostos daqueles que tentaram destrui-la.
Ser mulher, seja na França, no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo, ainda é um desafio imenso. Mas, como Gisèle mostrou, também é um ato de coragem e de resistência. E, de uma maneira ou de outra, todas somos Gisèle.
*Martina Salvo é jornalista, escritora e autora do livro sobre violência sexual infantil “Corpo em Silêncio”.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.