“Cora Coralina, quem é você?
Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado e trago comigo todas as idades”.
Brasilina Lavrador, a primeira de sete filhos, nasceu logo depois que seus pais meteram os pés em Goiás. O pai, Armindo Lavrador, veio em busca de pedras preciosas. Já sua mãe, Anna, logo na chegada procurou as águas para garantir proximidade com as lavadeiras. Não acreditava nas promessas de uma vida melhor perto do tão desejado ouro, ainda mais longe de sua família em Tucuruí. Sabia que suas mãos calejadas continuariam a ensaboar. Para se sentir perto de sua terra natal fez uma muda da sua flor predileta, zínia, apanhada na rua de onde nasceu. Ouvia sua avó dizer que ela era o símbolo do amor duradouro, da bondade, da preservação do amigo ausente e da lembrança diária dos bons momentos da vida. Apanhou um bulbo desejando que ele não se sentisse rejeitado afinal, na hora certa, ele seria levado à maternidade da terra. A primeira morada foi no campo, numa casinha velha com um quintal grande rodeado por uma murada de pedras. Nele tinham fruteiras fartas e flores de jardim. E foi lá que a muda viajeira foi semeada.
E assim como imaginara a promessa de fartura não se cumpriu. A única coisa que reluzia como o ouro era o grão do milho seco. Armindo Lavrador foi cumprir o destino que já lhe tinha sido imposto em nome pelos seus ancestrais. Não se escapa do que a vida nos destina. Foi para a roça trabalhar. Enquanto Anna, no poço sob a sombra verde dos morros, batia a roupa encardida em pedras despreciosas. Cantava as águas turvas do rio Vermelho. Cantava e navegava em novos sonhos. Levava os filhos juntos para brincarem com as crianças das colegas lavadeiras.
E Brasilina cresceu assim, dentro do cerrado castigado pela exploração de riquezas e pela plantação em grande escala, se identificando profunda e amorosamente com a terra e com os que nela trabalham. A gleba a definia. Era lá que ouvia o canto dos pássaros, o latido dos cães, o canto das mulheres. Lá aprendeu a ser terra, pedra, raiz, tronco, galhos, folhas e flores. Aprendeu com a mãe a cuidar das zínias de seu jardim. Tinha um zelo especial com a flor de coloração laranja, a que mais contrastava com as borboletas amarelas que pousavam por ali. E assim aprendeu que, o que é pra ser tem muita força, e que a vida é quebrar pedras para plantar flores. Colado na parede descascada de sua casa via-se um papel rasgado com uma frase que lembrava que, apesar das dificuldades, a honra não escapava:
“A terra é templo
O lavrador é semeador
A lavoura é altar
O grão é oferta”.
Brasilina agarrou-se à poesia para suportar a morte prematura do pai. Ainda não tinha completado dez anos quando Armindo chegou à casa com uma tosse que não passou com nada. Ele já estava enjoado do chá de resina de jatobá com casca de amburana. A ausência do pai foi o seu legado já que aumentou, e muito, sua responsabilidade com a mãe e os irmãos mais novos. Foi Brasilina que recolheu as roupas do varal no dia do velório, pois a mãe não conseguia nem se levantar: olhar fixo na enxada ainda coberta de terra vermelha, ferindo-lhe os olhos. A falta, dali por diante, seria sua companheira. Sentia-se velha ainda moça.
Com os rudimentos de alfabetização que aprendera com a mãe foi se recompondo, escrevendo sobre seus sentimentos, descobrindo palavras novas que brotavam dentro de si. Harmoniosas. Rítmicas. Ela não sabia, mas era o nascimento de uma poetisa. Poetisa da terra vermelha. Poetisa da pedra. Da roça. Dos verbos desgastados. Dos sentimentos inominados. Das flores de quintal. Do milho. A poesia não era um luxo. Era sobrevivência. Uma necessidade vital para suportar as tragédias.
E, assim, a mulher que veio de uma família ligada à terra se conectou à palavra e transformou sua realidade. Nunca frequentou escolas, o que, longe de ser um obstáculo à sua formação, lhe permitiu uma cultura diversificada, livre dos preceitos moralistas e reacionários da educação tradicional da época. Embebendo-se de natureza e de curiosidade literária, forjou uma maneira autêntica de traduzir o mundo em poemas.
Acreditou na palavra, no jovem, na humanidade. Mobilizava reuniões e debates na comunidade. O silêncio não protegeria ninguém. A cada compartilhamento de palavras ditas e escritas havia a superação de diferenças e a construção de um mundo no qual todos e todas acreditavam. Transformaram a desigualdade em linguagem.
E assim como o semear de uma primeira muda que não gosta diretamente de sol, mas precisa de luz, Brasilina foi cultivando com zelo seu jardim de palavras. Oferecia água moderadamente. E sem estereótipos sua poesia brotava colorida como as zínias: dourada, roxa, verde, laranja. Às vezes, nascia algum espinho que arranhava conforme os galhos cresciam. Espinhos que representavam as tristezas, mas também as defesas tão necessárias à vida que escolheu para si. Levantou sua bandeira libertária. Desafiou barreiras puritanas para viver o seu amor.
Um dia um espinho a atingiu em cheio. Após oitenta e cinco primaveras, num outono que não poupou os ipês brancos de seu quintal, Brasilina se deparou com a finitude. Foi rápido. Mas ela notou sutis mudanças. Ela, que sempre se gabou de dormir tão bem que nem tinha tempo de sonhar, começou a ter noites agitadas. Sempre se via semente sendo plantada no cerrado e acordava com uma sensação de sufocamento. Mas atribuía isso à doença em seu pulmão que tinha recém-descoberto. Um dia o sonho evoluiu porque ela já não se assustava. E numa madrugada, sem nenhum sequer despertar, a semente foi soterrada e brotou lindamente num jardim de flores zínias cobertas de borboletas.
Nessa manhã, ao acordar, ela soube que tinha pouco tempo. Entretanto a tranquilizou saber que ela tinha semeado muito durante a sua vida. Toda a sua poesia já estava pelo mundo, pelos jardins, pelas pedras e pelo cerrado. E é uma oportunidade ímpar. Não somente por mostrar as belezas da natureza às pessoas. Mas também por permitir às pessoas compartilharem as suas próprias belezas.
*Este texto foi escrito por Juliana Tavares e Ana Maria Mansoldo e é um presente pro Andarilho da luz, pro Pé no Cerrado e pro Caminho de Cora Coralina.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.