O atendente de farmácia Luan dos Santos, de 32 anos, queria apenas passar um fim de semana na praia com os amigos e, saindo de São Paulo, desceu a serra de moto com um colega e mais uma dupla em outro veículo. Quando já estavam em Santos, mas ainda na Rodovia Anchieta, a alegria do rapaz transformou-se em tragédia numa abordagem da Polícia Militar (PM). Sem mais nem menos, um major disparou contra ele, matando-o. O caso ocorreu em 16 de fevereiro deste ano.
Luan foi um dos 56 mortos da chamada Operação Verão, embora formalmente seu assassinato não tenha sido computado pelas estatísticas do governo, naquela que foi a ação mais letal da história de São Paulo, ficando atrás apenas do Massacre do Carandiru, em 1993, que terminou com 111 detentos executados. Para pôr um ponto final no episódio, o oficial alegou que o disparo foi acidental, ocasionado por uma frenagem brusca na viatura no momento do desembarque para a abordagem, o que naturalmente foi aceito como versão final e verdadeira pela gestão do governador bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), que abertamente fomenta a violência policial.
Agora, mais de dois meses depois, o Instituto Médico Legal (IML) emitiu seu laudo pericial realizado no corpo da vítima. Contrariamente ao que foi alegado, o atendente de farmácia foi atingido por dois tiros e não um só como dito pelo PM envolvido na morte. Além do disparo que entrou pelo lado esquerdo do tórax e que saiu na face direita de seu peito, o documento mostra que Luan recebeu um outro tiro, que atingiu o antebraço direito na parte anterior e saiu pelo mesmo membro do lado de trás. Ou seja, foram dois disparos efetuados pelo menos, o que enterra a versão de “acidente”.
Como se não bastasse a tese farsesca apresentada oficialmente pela PM para a morte do jovem, desmontada pelo laudo assinado pelo médico-legista Riscalla Brunetti Cassis, agora o governo Tarcísio desmente o exame. Questionado sobre o resultado da perícia que refutou a versão de disparo acidental, a Secretaria de Segurança Pública (SPP) apelou para um expediente no mínimo inacreditável: afirmar que o laudo aponta algo que notoriamente não aponta.
“O laudo pericial foi concluído e apontou que o suspeito apresentou duas perfurações, e não dois disparos, como afirma a reportagem”, respondeu a pasta ao diário Folha de S.Paulo. Não se conhecem registros de um governo que, mesmo diante de uma perícia técnica, desminta um conteúdo simplesmente alegando a versão inicial refutada, sem qualquer explicação.
Sempre uma versão mirabolante
Os três amigos de Luan, o que conduzia a moto em que ele estava e os outros dois que seguiam em outra motocicleta, contaram versões idênticas e totalmente plausíveis. Todos receberam sinal de parada, reduziram a velocidade, encostaram e desmontaram das motocicletas. Segundo essas testemunhas, Luan foi atingido assim que iniciou o desembarque do veículo em que estava na garupa, caindo imediatamente. Um tiro sem qualquer razão ou explicação.
Já na história contada pelo soldado e pelo major que estavam juntos na viatura, eles teriam dado ordem de parada porque uma das motos era da marca BMW, muito visada por ladrões, e ela estaria circulando justamente num trecho onde roubos desse tipo de veículo acontecem com frequência.
Como a moto em que Luan estava estaria fazendo zigue-zague, conforme a versão dos PMs, eles imaginaram que se tratava de uma tentativa de assalto. A partir daí, mandaram as motos encostarem, mas durante uma freada brusca do carro policial, conduzido pelo soldado, o major teria acionado acidentalmente o gatilho de sua pistola Glock .40, pois estaria em posição de tiro, apontando para Luan, para se proteger, uma vez que se sentiu ameaçado pelo suspeito.
O depoimento do major diz ainda que o rapaz teria desembarcado da moto sem notar que tinha sido atingido, corrido para jogar algo da ponte sobre o rio Casqueiro, para só então cair na pista. Ninguém encontrou nada no rio, tampouco endossou esse detalhe que pretensamente incriminaria o rapaz.