Por Danilo Tavares*
A psicofobia é uma questão estrutural em nossa sociedade, um exemplo claro disso é uma denúncia ocorrida em 2019 envolvendo Andrea Batista da Silva, portadora de transtorno do espectro autista de nível 1 (leve), feita contra uma Oficial de Justiça do Ministério Público Federal que fez o seguinte comentário em rede social:
“Engraçado Andrea, vc também é a cara do PT! Qdo te interessa vc vai fazer denuncia no MP, vc se declara autista nor jornais e… não mais que de repente vc virou a detentora da verdade e do ‘terei prazer no eu avisei’. Vc é menos favorecida, sofre de alguma deficiência mental ou vc se acha ‘a esperta?’” (Vânia A. L., 2019.
A associação do autismo de Andrea com a ideia de ser “detentora da verdade” e de ter prazer em se colocar como superior é injusta e infundada. O autismo não define a capacidade de uma pessoa de discernir a verdade ou de ter conhecimento sobre determinados assuntos. Além disso, a insinuação de que Andrea seria “menos favorecida” ou teria alguma “deficiência mental” é extremamente ofensiva e desrespeitosa. É importante ressaltar que a psicofobia não se limita a insultos diretos ou discriminação evidente, mas também pode se manifestar através de comentários sutis e insinuações que desvalorizam a experiência e a identidade das pessoas com transtornos mentais.
Em sua defesa, a ré mostra seu aspecto de superioridade ao alegar ter ajudado Andrea em questões jurídicas e é profundamente problemático. Ao trazer essa informação para o contexto da discussão, a ré tenta estabelecer uma dinâmica de poder, sugerindo que Andrea deve submissão ou gratidão em troca da suposta ajuda recebida. Isso não apenas desvia o foco do debate em questão, mas também perpetua a ideia prejudicial de que pessoas com deficiências devem ser gratas por qualquer forma de assistência, reforçando assim a visão de que são inferiores.
Além disso, a alegação do juiz de que as redes sociais são espaços comuns para discursos de ódio e discriminação, que ele chama de “falas hostis”, é preocupante. Essa atitude parece desculpar e normalizar comportamentos discriminatórios, como se fossem inevitáveis ou aceitáveis dentro desse ambiente virtual. No entanto, é importante destacar que não há justificativa para a disseminação de discursos discriminatórios em qualquer contexto, online ou off-line. Ao minimizar a seriedade desses discursos e atribuir a responsabilidade à vítima por estar presente nas redes sociais, o juiz perpetua uma cultura de impunidade e tolerância à psicofobia.
Por fim, a lamentação do juiz sobre a separação de amizades por conta de discussões políticas é extremamente problemática. Ao atribuir essa questão, parece responsabilizar a Andrea pela ruptura da amizade, o juiz ignora completamente o papel da ré na perpetuação da psicofobia. Essa atitude desvirtua o verdadeiro problema em questão, que é o comportamento discriminatório de uma Oficial de Justiça do Ministério Público Federal. Comparativamente, imagine se alguém chamasse uma pessoa negra de “neguinho(a)” ou uma mulher de “desequilibrada” com o único intuito de desmerecer a outra pessoa pelo que ela é. Seria inaceitável, e o mesmo padrão deve ser aplicado quando se trata de discriminação contra pessoas com transtornos mentais.
É preocupante que uma funcionária do sistema de Justiça brasileiro faça esse tipo de fala. Porém, é duplamente preocupante que o juiz da 2ª Vara de Juizado Especial Cível de Santos, Sr. Guilherme, tenha minimizado a gravidade do comentário, quase que culpabilizando Andrea por ser alvo de discriminação em um ambiente online.
A responsabilidade pela disseminação de discursos de ódio e preconceito deve ser atribuída àqueles que os perpetuam, não às vítimas que ousam denunciá-los.
Essa denúncia é um lembrete poderoso de que a psicofobia está profundamente enraizada em nossa sociedade e que ainda há muito a ser feito para combater essa forma de discriminação. É fundamental que instituições como o Ministério Público Federal e todo o Sistema de Justiça do Brasil promovam a conscientização e adotem medidas eficazes para prevenir e combater a psicofobia em todas as suas formas.
Essa atitude apenas reforça a necessidade urgente de educação e conscientização sobre saúde mental, bem como a implementação de políticas e leis que protejam as pessoas contra a discriminação com base em transtornos mentais. A psicofobia não pode ser tolerada em nenhuma circunstância e é responsabilidade de todos nós combater esse tipo de preconceito.
Link da decisão do juiz.
*Danilo Tavares é portador de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, depressão e transtorno de ansiedade. É produtor cultural, documentarista, coordenou diversas oficinas de cinema digital, é gestor e desenvolve propostas de projetos para editais culturais e sociais. Atualmente é proprietário da Zopp Criativa Produções, empresa com selo Estratégias ODS, diretor de projetos do Clube do Choro de Santos, membro do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista e diretor da Casa Crescer e Brilhar (São Vicente). Instagram: @dantavares420.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.