Por Raphael Sanz
Todo ano a história parece se repetir na Baixada Santista. Um PM da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) é morto por pessoas aparentemente ligadas ao crime organizado – cuja sigla hegemônica é a do PCC (Primeiro Comando da Capital) – e então começa uma chamada Operação Escudo, ou “Operação Vingança”, que irá empilhar cadáveres na região onde ocorreu a morte do policial.
Em 2023, o assassinato a tiros de Patrick Reis, agente da Rota, desencadeou outras 29 mortes no Guarujá.
Dessa vez, foi Samuel Wesley Cosmo, outro agente da Rota, quem foi morto durante incursão por vielas de uma área de palafitas do bairro Rádio Clube, em Santos, por volta das 17h de 2 de fevereiro, quando tiros foram disparados e o militar foi atingido na cabeça. Ele chegou a ser levado para a Santa Casa de Misericórdia, realizou exames de tomografia computadorizada, mas não resistiu e faleceu no fim da noite. A câmera corporal da vítima filmou o momento dos disparos.
Horas depois do ataque, as ruas de várias cidades região foram inundadas por centenas de veículos da Polícia Militar e da Polícia Civil, sobretudo da Rota, unidade de Choque considerada uma das mais letais do Brasil e conhecida há décadas por suas ações que resultam em mortes por todo o estado. Começava então uma nova Operação Escudo.
E se o agente morreu na sexta (2) à noite, na tarde de sábado (3) duas pessoas já tinham sido mortas pela PM na região. Um deles morreu em ação da Rota naquela madrugada. Segundo informações da Secretaria da Segurança Pública (SSP), um homem não identificado morreu depois de ter atirado contra a tropa de elite da PM, que estava em patrulhamento.
O outro caso ocorreu em São Vicente. Ainda de acordo com a SSP, um homem não identificado morreu depois de ter atirado em soldados da Rota na Avenida Sambaiatuba, bairro Jóquei Club, em São Vicente.
No sábado (3), o ex-presidente Jair Bolsonaro esteve em Santos para tentar lucrar politicamente com o enterro do PM da Rota. Ele ficou ao lado do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) durante a cerimônia, mostrando certo incômodo. E, é claro, pediu que a Rota matasse “mais de 40’.
“Mataram um soldado da Rota ontem com um tiro no olho. A Rota já desceu para operar. Tem um soldado ferido no braço. Na última vez acho que uns 50 foram operados lá. Problema de pele, micose, todos foram operados, bem tratados”, afirmou, completando mais adiante: “Vão operar mais uns 40 lá, com certeza”.
E com esse contexto, na última segunda-feira (5) já eram 7 mortos pela operação. O boletim de ocorrência (BO) da sétima morte diz que três policiais da Rota participavam de uma operação na Baixada Santista na noite de domingo (4). Por volta de 23h30, eles receberam a informação que um suposto traficante do Morro São Bento estava em um carro perto do túnel Rubens Ferreira Martins.
Eles se deslocaram até o local e encontraram o veículo na Rua Dr. Gastão Vidigal. A viatura acompanhou o carro até o acesso ao morro, na altura da Rua São Cristóvão, onde os agentes solicitaram a parada. Ainda segundo o BO, o motorista de aplicativo atendeu a ordem e desceu. Porém, o passageiro, que estava no banco da frente, teria apontado uma arma contra os policiais. Dois PMs reagiram e dispararam. Um deles atirou cinco vezes, enquanto outro fez dois disparos, ambos com fuzis.
O BO aponta, também, que um policial militar verificou que o suspeito ainda estava vivo. No colo dele, a polícia teria encontrado uma pistola com seis cartuchos intactos. Além do carro, a janela de uma casa foi alvejada. O motorista de aplicativo disse que fez uma corrida para o suspeito, que pediu para ele buscar uma moça. Porém, mudou de ideia ao ver a viatura e orientou que o condutor voltasse para o morro.
A polícia não encontrou objetos ilícitos com o condutor. O Instituto de Criminalística (IC) foi acionado para exame de levantamento de local e residuográfico nos envolvidos. As armas foram apreendidas. A ocorrência foi registrada como morte decorrente de intervenção policial e homicídio tentado na Central de Polícia Judiciária (CPJ) e encaminhada ao 1º Distrito Policial (DP) de Santos.
De segunda (5) até a presente sexta-feira (9) muita coisa aconteceu na Baixada Santista. Na quarta (7) mais dois PMs foram baleados em Santos enquanto patrulhavam o Jardim São Manoel. Um deles, baleado na cabeça, não resistiu. O outro está internado.
Também nessa sexta-feira (9) o número de vítimas da operação dobrou e está em 14 mortes confirmadas. As últimas mortes foram confirmadas nessa madrugada: dois homens que segundo a polícia teriam entrado em confronto com as forças de segurança na Avenida Bandeirantes, em Santos.
E a polícia contou uma história muito parecida com as demais: a troca de tiros ocorreu quando era averiguado um suposto paradeiro do homem que matou Samuel Wesley Cosmo. Os PMs patrulhavam as ruas em busca do local quando foram atacados a tiros e reagiram. De acordo com o boletim de ocorrência, apreenderam uma pistola 380 e um revólver calibre 38, além de porções de drogas.
Operação Escudo de 2023 funcionou como punição coletiva
O PM Patrick Reis foi assassinado no Guarujá supostamente por um sniper do crime organizado. “Supostamente” porque mais tarde não ficaria comprovada a autoria do homem apontado como o matador do policial da Rota. Rapidamente mais de 600 homens da PM paulista foram mobilizados em torno da Operação Escudo e rumaram à cidade do litoral. Ele foi baleado no tórax enquanto fazia patrulhamento na comunidade de Vila Zilda, no Guarujá. Desde 1999 um homem da Rota não era morto em serviço.
A partir daí começou uma verdadeira carnificina recheada de ilegalidades. A ação ostensiva da PM jamais escondeu que se tratava de uma vingança contra as “comunidades que abrigam o crime organizado”, como se a comunidade tivesse essa escolha. 28 pessoas foram executadas entre 28 de julho e 5 de setembro enquanto a operação durou, ao mesmo tempo em que os suspeitos pelo assassinato do soldado Reis eram capturados e levados ao tribunal.
O Instituto de Criminalística da Polícia Científica de São Paulo realizou em agosto um exame para detectar a presença de resíduos químicos provenientes do disparo recente de arma de fogo nas mãos de Ericksn David da Silva, o “Deivinho”, acusado pela Polícia Civil de ter atirado e matado o soldado da Reis. O resultado do chamado Exame Pericial por Residuografia em Tiras nas mãos do acusado, no entanto, deu negativo.
“Eles [policiais da Rota] andam de capuz pelas vielas, estão matando primeiro para perguntar depois. Igual fizeram com um moleque que estava indo no mercado. O moleque gritava ‘pelo amor de Deus’, e bateram no menino, todo mundo ouviu aqui. Mataram o menino e levaram o celular dele. Menino inocente, isso não pode”, revelou um morador ao Brasil de Fato.
Quando o número de vítimas chegava a 12, em 31 de julho, um homem identificado como “Soldado Raniere” celebrava o placar de mortos nas redes: “Só atualizando: são 9”. Em outra, ele escreve: “Para conhecimento, atualizando o placar até o momento 12 x 1”. Àquela altura, o governador Tarcísio se dizia “extremamente satisfeito” com a ação da polícia. Ao todo, 29 pessoas foram mortas até setembro.
Um morador da Vila Baiana, no Guarujá, fez um relato do cotidiano da ‘quebrada’ nessa última semana ao jornalista Matheus Pichonelli, do Uol. Ele afirma que após as 22 horas era comum que as pessoas estivessem nas ruas confraternizando, mas que após o início da Operação Escudo e a subsequente matança, as ruas estão completamente vazias após esse horário.
“As pessoas têm medo de descer o morro e não voltar. Tem sido assim desde o dia em que mataram o policial militar da Rota aqui perto, na quinta-feira (27). Quando você sai de casa os policiais já perguntam quem você é, se é morador e por que está descendo. Tem vizinho que chega depois das 22 horas do trabalho e liga para casa do ponto de ônibus. As mulheres então descem com as crianças para buscá-lo”, declarou.
O homem, que obviamente não foi identificado, relata que também foi vítima de uma humilhação decorrente do massacre. Na sexta-feira (28) policiais bateram à porta da sua casa, invadiram o domicílio e, quando perceberam que ele tinha uma passagem por tentativa de roubo anos atrás, o ameaçaram. Sua filha de 2 anos presenciou a cena.
“Meu irmão começou a filmar e um PM muito alterado quis tomar o aparelho dele e o agredir. Minha mãe tem 51 anos e pediu para eles terem calma porque ela é especial. Disse que era da igreja e que meu irmão sofre com ataques epiléticos” relatou.
*publicado originalmente na Revista Fórum