Bumba Meu Boi - Foto: Agência Brasil

“Boas-vindas, boas-vindas

Venha conhecer a vida

Eu digo que ela é gostosa

Tem o sol e tem a lua

Tem o medo e tem a rosa

Eu digo que ela é gostosa”

(Caetano Veloso).

Raimunda foi uma bebê muito bem recebida pelos seus pais dona Filomena e mestre Amaral. Ela nasceu no próspero mês de junho, no festeiro bairro de Madre Deus, na cidade de São Luís do Maranhão. Seu pai apresentou a ela o sol, a lua, a rosa, a prosa. Sua casa era abençoada pelo São João e as brincadeiras e o Bumba meu Boi já perduravam por quatro gerações, uma memória inscrita no corpo que tecia lembranças profundas.

Cresceu numa rua de terra cheia de crianças que sempre que podiam estavam de pé no chão correndo de um lado para o outro. Parecia que a alegria delas era tão grande que não havia nenhum outro jeito de expressá-la além de correr desenfreadamente. Sempre ouvia os adultos do bairro aumentarem o coro dos pais:

– Dica, cuidado pra não quebrar mais uma vez a perna! Égua, que menina travessa!

Os meninos e as meninas começam a brincar e logo aprendem as cantigas nas escolas, nas ruas ou ainda nas roças em que trabalham com as famílias. Sua canção predileta, quando pequenininha, era sobre os animais que viviam na floresta e sempre se fascinou pelo som que a palavra orangotango emitia. E adorava imitar os trejeitos do primata pulando e batendo as mãos no peito.

“Crocodilo

Orangotango

As duas serpentes

A águia real

Gato

O rato

O elefante

Não faltou ninguém

Só não veio foi o cateretês”.

Talvez seu amor pela cultura popular venha do pai que entoava seu canto potente e apaixonado do sotaque de matraca para o Bumba meu Boi de seu bairro. Também curiosa, acompanhava a mãe nos brilhosos bordados de miçangas para reluzir o boi. Passavam uma boa parte do ano trabalhando, mas também se divertindo. Conta dos ensaios que ocorriam entre abril e início de maio nas noites de sábado e se estendiam até a manhã de domingo, tendo galinha caipira com café preto no café da manhã para curar a farra. Ela sempre tentava fugir da cama para acompanhar de longe os pais sorrindo com o corpo como ela fazia com as amigas.

Com o batuque aprendeu o mistério invisível do brincar que leva os brincantes para além de materialidade. Transportam para um mundo sagrado.

Na década de 60, quando iam brincar, todos do bairro abriam as portas das casas e vinham para as ruas. Ela adorava as noites de lua cheia que aumentavam a visão nas ruas pouco iluminadas do centro.

Conta tudo isso com uma certa tristeza no olhar. Hoje, as portas de sua casa estão fechadas, porque além de estar doente mudou-se de estado para estar perto da filha durante o processo de quimioterapia que a fragilizou bastante. Suas pernas não a deixam mais brincar de ser o orangotango e nem ser a índia guerreira do Bumba meu Boi. Será que foi pelas três vezes em que as quebrou?

A cidade onde mora atualmente nem sabe o que é o boi. Apesar de estar perto do seu círculo de afetos tem repensado sua escolha pelo sacrifício de estar longe dos lugares que ama e aos quais um dia pertenceu. Não vê a hora de terminar o ano do processo mais intenso do tratamento para voltar ao menos numa visita para onde seu coração pulsa.

Apesar das suas limitações físicas, o refúgio dessa tristeza é brincar. Usa a brincadeira como ferramenta terapêutica. Mesmo sem pular, sem poder dar cambalhota ou agachar, ela brinca. Me disse um dia que deveríamos brincar o resto da vida. Isso que sentia mais falta desde que saiu da sua terra!

– Aqui no litoral de São Paulo a gente esquece disso. Tá todo mundo sisudo olhando pro relógio e nem percebe se faz sol ou chuva.

Canta as toadas e as cantigas que a conectam com quem ela é e com o cheiro do arroz de cuxá feito por sua avó materna nos dias do festejo. Ou ainda com a juçara acompanhando o camarão seco e farinha d’água que comeu na Festa da Juçara, onde conheceu o pai de seus cinco filhos. Relembra a cantiga que acompanhava o namoro:

“O meu sabiá

O minha zabelê

Toda a madrugada eu sonho com você

Se você não acredita eu vou sonhá pra você vê”.

Em dezesseis de junho deste ano de 2022 minha sobrinha Teté fez cinco anos. Estávamos todos comemorando juntos mais um ano de vida da nossa cerejinha ardida com uma alegria sem pudor. Eu, meus tios, meus irmãos, minha mãe estávamos ostentando sorrisos. As crianças, por outro lado, sorriam com o corpo correndo e gritando.

E eu?

Eu corri atrás delas! Por mim e por Dica.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.