De que lugar eu olho para o mundo? Se eu precisasse nomear este lugar, se pudesse fazê-lo, como o descreveria? É confortável me vestir? Ser eu? E mais, para além do meu umbigo, é confortável ser um exemplar da nossa espécie?
Existem milhares de teorias sobre como nos tornamos os únicos hominídeos a habitar a Terra porque nem sempre foi assim, já coexistimos no mesmo espaço tempo com outras espécies da família homo. O Homo neanderthalensis, mais conhecido por nós como homem de neandertal, por exemplo, foi uma delas. A partir dessa premissa, me pergunto, como nós dominamos o planeta e extinguimos hominídeos mais fortes e mais inteligentes do que nós?
Sim, não somos os deuses da inteligência como supomos. Os neandertais tinham cérebros em média 15% maiores que os nossos. Daí surge uma outra possibilidade, uma possibilidade que me causa náusea, se eles eram mais fortes e mais inteligentes, talvez nós fôssemos mais malvados.
Volto pro meu lugar no mundo. Mulher, filha, companheira, profissional, mãe. Observando as estruturas que me comprimem, sem poder exatamente mudá-las, sem ao menos perceber esforços reais para que sejam benéficas para todos, me sinto refém de algo que sequer existe, de algo criado para nos categorizar e dividir. Como posso me livrar de uma ameaça constante e invisível?
Seria de fato a maldade um traço inato? Não acredito nessa teoria, eu vejo nos olhos do meu filho a pureza de nossa natureza original, mas às vezes quase. Mesmo inserida na esfera existencialista que prevê que a existência precede a essência. O que isso significa? Significa que somos moldados pelo meio naturalmente e biologicamente, mas também somos moldados pelas regras inventadas e seus sistemas e alegorias, padrões e prisões.
Se a evolução de nossas capacidades sociais e de raciocínio permitiram tantas expressões belas ao longo da história, incluindo o entendimento de que somos produtos de convívio, como posso achar ordinário que existam pessoas bilionárias enquanto outras passam fome, pessoas passando férias nas Maldivas enquanto outras passam o dia inteiro dentro de transportes públicos superlotados para sobreviver no fio da navalha? Como posso achar que um homem com bilhões na conta – bilhões de algo inventado pelo próprio homem – seja bom, quando pessoas ao redor dele, na mesma cidade, quiçá na mesma vizinhança, nunca vislumbraram uma faísca de esperança ou dignidade?
Tudo ao redor nos testa o tempo inteiro e é impossível escapar. Me sinto com frequência sufocada e impotente.
Tendo a achar que os excessos de algumas pessoas compensam sua plena consciência de finitude, da nossa igualdade. São adereços que geralmente escondem interiores ocos, tão profundos quanto um pires. Vemos abertamente nas redes sociais um Menu de gente inútil e fútil vivendo numa realidade paralela e cor-de-rosa que soa quase como escárnio ante toda a miséria que nos afoga homeopaticamente.
Eu também quero ganhar grana, me tornar best seller, desenvolver meus projetos e viajar, comer bem e vestir o que gosto. Mas jamais esquecerei que ao meu lado, na mesma trincheira, tem gente impossibilitada de lutar, tem gente com fome, tem gente ferida de morte. As regras do jogo determinam um único grupo como vencedor e mesmo ruindo, mesmo escancaradamente patética, as leis perduram, o Homo branco hétero rico sapiens é folgado, mau-caráter e adora regalias.
Que a evolução da nossa inteligência também me faça aparar as arestas das minhas percepções sobre a vida, sobre amor e empatia, para que eu tenha clareza de que tento vencer o mesmo sistema que me subjuga e que não é fácil acordar dentro de um sonho coletivo.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.