Bolsonaro, muito embora sem ao menos perceber a importância de seu ato, coloca em discussão o tema fundamental e secular da nação: a vergonhosa e revoltante desigualdade social. Ao recusar-se a exigir o passaporte de vacinação contra Covid a estrangeiros, disse que preferiria morrer a perder sua liberdade.
O tema já está na rua, com várias interpretações sobre o que seja liberdade. E, como uma rolha podre, esse tema não pode mais ser empurrado inteiro de volta para dentro da garrafa. Há que ser sacado e discutido até o fim. Não haverá candidato às eleições de 2022 capaz de fugir a esse tema.
Este artigo já estava pronto quando tomei conhecimento das ameaças de Bolsonaro ao ministro do STF, Alexandre de Moraes. Dá nova prova de que não sabe o que é liberdade, ao criticar Moraes pela prisão de Jefferson, que aparecia armado em foto e se dizia disposto à violência. Os dois entendem que liberdade é sinônimo de esbórnia. As verdadeiras restrições à liberdade são as que aponto ao longo do artigo. Bolsonaro certamente nunca ouviu falar delas, mas as pratica constantemente.
É preciso lembrar que a dívida social, gigantesca, é a chaga mais feia e corresponde ao acúmulo da desigualdade. Zerar esta apenas manterá a dívida social no mesmo patamar. O objetivo imediato deve ser combater a desigualdade e, ao mesmo tempo, começar a resgatar a dívida social. A dívida social é crédito dos mais pobres que corresponde a um débito em igual valor dos mais ricos. Uma parte deste débito é material e está contabilizada como riqueza patrimonial que, em tese, pode ser cobrada. A outra parte do débito é intangível e se refere ao padrão de vida suntuoso usufruído pelos ricos por séculos, sem possibilidade de cobrança pelos pobres, a não ser moralmente. Este resgate moral se justifica pelo fato de que nossa desigualdade, origem de tudo, não é natural, mas forjada pela opressão dos ricos. Melhor ficaria chamá-la de iniquidade.
Posto isto, fica claro que o presidente e os áulicos que repetiram seu bordão não têm a mínima noção sobre o que seja liberdade num país como o Brasil. Há muitos pensadores importantes que se debruçaram a vida inteira pesquisando sobre o que seja justiça social e como obtê-la. Um dos autores a que mais recorro é Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia-1998. Hoje nos seus 88 anos, Sen passou a vida esmerando a resposta a duas perguntas: “Por que igualdade?” e “Igualdade do quê?”.
À primeira, respondeu que a igualdade melhora a vida das pessoas. Além dos trabalhos de Sem (1) a respeito, há inúmeros outros mostrando que a desigualdade joga contra a produtividade do sistema social, entre os quais destaco “O preço da desigualdade”, de Joseph Stiglitz, outro Nobel de Economia-2001 (2); “O nível-Por que uma sociedade mais igualitária é melhor para todos”, de Richard Wilkinson e Kate Pickett (3); “Desigualdade social e produtividade social no Brasil – 1960 a 2000”, minha tese USP/FFLCH, 2005. Estas leituras são de preferência para os que têm suas questões éticas/morais plenamente “acomodadas” pelo mercado, o qual, acreditam, é o instrumento que possibilita as decisões mais justas e eficazes (não trato aqui dos vermes escancaradamente contra a justiça social). O mais que podem fazer, dizem, é higienizar e lubrificar o ambiente do mercado, para que este funcione na sua plenitude: o copo das necessidades encheria rapidamente e, logo, logo, começaria a gotejar para todos, um tal de trickle-down effect…, tão recusado hoje, até por parte de seus criadores.
Mas, mais ainda do que à primeira, é a resposta de Sen à sua segunda questão, “Igualdade do quê?”, que vai embananar a cabeça de Bolsonaro e seus seguidores. Para começar, conto uma breve história, verdadeira. A querida e saudosa Irmã Dolores criara e mantinha com esmero e paixão uma escola profissionalizante para pessoas muito pobres no bairro Quarentenário, em São Vicente, hoje Jardim Irmã Dolores, onde eu costumava ir ajudar a refletir sobre questões sociais.
Numa dessas prazerosas idas, há uns quinze anos, me pediu que, naquele semestre, eu falasse sobre liberdade. A certa altura, perguntei aos cerca de cinquenta jovens e adultos presentes, se tinham liberdade para ir à Igreja, ao parquinho etc. A resposta era sempre uníssona: “temos…”. Aí, perguntei se tinham liberdade para ir a Santos. Novamente: “temos…”.
Mas, desta vez, uma senhora se levantou e disse, alto e bom som, que não tinha liberdade. Perguntei-lhe se o marido era ciumento e não a deixava ir. Disse que não, que se davam muito bem e se respeitavam. E completou explicando que não tinha liberdade para ir a Santos porque “não tinha dinheiro para a condução”. Ou seja, ela não era proibida de ir, dispunha da liberdade formal para ir, mas não tinha a liberdade real de ir a Santos. À esta liberdade de fato, para valer, que possibilitaria àquela senhora tomar o ônibus, Sen chama de Liberdade Substantiva. Ou seja, para desfrutar de liberdade não basta que eu não seja proibido de fazer algo; a liberdade só se concretizará para mim se eu tiver as condições necessárias para realizar aquele algo. A senhora do Quarentenário, com sua simplicidade, tinha plena consciência do nó górdio do drama brasileiro.
Ao conjunto das condições necessárias garantidor da liberdade substantiva, Sen chama de Conjunto Capacitário. Apesar do nome, engloba condições muito além das intelectuais. Uma pessoa A tem seu Conjunto Capacitário necessário composto por elementos a, b, c…, que vão se agregar à liberdade formal para chegar à liberdade substantiva. Outra pessoa, B, pode, em relação à pessoa A, possuir muito menos de a, muito mais de b e tanto quanto de c. O que importa é que A e B tenham cada um a liberdade substantiva necessária para realizar o projeto de vida escolhido. Se ambas a possuírem, haverá igualdade de liberdade substantiva entre A e B.
Estar adequadamente alimentado, sem medo de que lhe falte comida no futuro, é uma das condições importantes para se ter liberdade substantiva. Se o povo entendesse como Bolsonaro, que “é melhor morrer do que perder a liberdade”, então pelo menos 117 milhões de brasileiros, 55% da população, estariam pensando em se matar, pois esta é a soma das pessoas que vivem em Insegurança Alimentar-IA: 19 milhões em IA-grave (com FOME); outros 24 milhões em IA moderada (quantidade de alimentos insuficiente); e, ainda, outros 73 milhões em IA leve (composição alimentar piorada) (4). Isto, num país que está entre os maiores produtores mundiais de alimentos, boa parte exportada para atender a um bilhão de pessoas no resto do mundo, conforme falou Bolsonaro na última plenária da ONU a que compareceu. Entre os humanistas que se alimentam bem, é comum que suas refeições percam o gosto quando vem à lembrança os famintos. Não precisamos demonstrar inúmeras outras faltas de condições indispensáveis para se ter liberdade substantiva pois, quando vivemos em insegurança alimentar, é porque também não satisfazemos muitas necessidades importantes.
Assim, o número dos que não dispõem de liberdade substantiva no Brasil ultrapassa em muito a 117 milhões, pois mesmo parte dos 95 milhões que estão em segurança alimentar têm muito pouco para suprir a insuficiência de outras condições para transformar a liberdade formal em substantiva.
A sociedade brasileira fica, portanto, muito distante da desejável igualdade de liberdade substantiva. É que há enorme desigualdade de conjuntos capacitários formados por direitos como trabalho digno, renda mínima, aposentadoria, ar limpo, água potável, alimento saudável, saúde, educação, cultura, moradia, saneamento, transporte, caminho livre para ir e vir, segurança, lazer, não ser discriminado por preconceitos de qualquer espécie. Todas estas condições, entre muitas outras necessárias a uma vida feliz, são direitos humanos, pois só com estes incorporados à liberdade formal, será possível viver a vida que valha a pena viver, síntese mais irrefutável de direito humano.
Há os que pensam ser impossível a convivência entre liberdade e igualdade, que seria necessário escolher uma ou outra. Entendo o oposto: impossível é existir liberdade sem igualdade ou igualdade sem liberdade.
Essa igualdade de liberdade substantiva só acontecerá quando o perfil de produção se acoplar ao perfil das necessidades de bens e serviços. E o acoplamento se dará quando a sociedade estiver organizada politicamente com esse objetivo. Esta também será a situação de melhor funcionamento do metabolismo social e, portanto, de maior produtividade sistêmica, pois não haverá gargalos econômicos nem exploração social. Somente nesta situação será possível deixar as decisões de alocação dos recursos sociais por conta de uma demanda agregada efetiva livre interagindo num mercado livre, reservando ao Estado, que então seria mínimo, para as tarefas que precisam ser feitas comunitariamente, como justiça e segurança. Aliás estas também seriam pouco necessárias, dado que os conflitos sociais seriam escassos.
As políticas públicas de Bolsonaro nos colocam cada vez mais longe da almejada igualdade de liberdade substantiva. A começar pela política econômica insana de “austeridade expansiva”, baseada na ideia de que, conquistada a confiança do investidor exigente de equilíbrio fiscal, viria em seguida o crescimento. Defenda-se então a todo custo a EC 95, a do Teto de Gastos, já espremidos pela Regra de Ouro e pela Lei de Responsabilidade Fiscal, a menos dos gastos com juros. Minimize-se o Estado, deixando a alocação de recursos sociais, privados e públicos, por conta do mercado, entidade santa esta que seria incorruptível e muito mais eficaz. Privatize-se tudo, defendem Bolsonaro e Guedes, inclusive BNDES, CEF, BB, CORREIOS… Já tentaram até o SUS. Impuseram uma política de preços burra e exploradora do povo, para que este deixasse de se orgulhar da PETROBRÁS e esta pudesse ser vendida na bacia das almas, possível porque parece não haver órgão público que fiscalize o cálculo dos preços mínimos de leilão. Uma lástima de política econômica, inclusive do ponto de vista da Soberania Nacional.
O resultado, claro, será cada vez mais desacoplamento entre o perfil de produção de bens e serviços e o perfil das necessidades. Ou seja, liberdade substantiva cada vez mais concentrada em poucos.
Quando se fala em liberdade, então, há que se pensar que os pobres têm o direito à indenização pela liberdade que lhes tem sido negada desde sempre. O presidente deveria refletir muito quando fala em liberdade. Especialmente quando coloca nos comunistas a pecha de usurpadores da liberdade. O grande usurpador é o capitalismo, especialmente em sua fase neo.
A igualdade de liberdade substantiva, e que se confunde com a igualdade de direitos humanos, pode ser utopia, mas sem o amor que nos mantenha sempre a persegui-la, não haverá humanidade.
(1)Dos quais destaco “Desenvolvimento como liberdade”, Cia. das Letras, São Paulo, 2000.
(2)Bertrand Ed., Lisboa, 2016.
(3)Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2015.
(4)Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) -Pesquisa ref. dez/20.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.