O livro “O Que Fazer?”, do escritor russo Nikolai Tchernichevski, foi lançado em 1863. O autor foi preso por publicar artigos em jornal que contestavam o governo czarista. Preso em São Petersburgo, solicitou autorização para escrever um livro. Em quatro meses o escreveu e a censura czarista não encontrou qualquer vestígio de ideias revolucionárias naquele romance. No entanto, essa publicação incendiou a juventude russa e aumentou a mobilização por mudanças, tendo influência direta na Revolução de 1917. Posteriormente, Lênin publicou “O que Fazer?”, em reconhecimento à importância da obra de Nikolai Tchernichevski.
Os personagens do livro, que os censores do Czar entenderam como um simples e inofensivo romance à ordem estabelecida, rompem com as tentativas de imposição de um casamento combinado por interesses materiais, dedicam-se aos estudos, são solidários entre si e tratam-se com respeito.
Vera Pavlovna, jovem que não abre mão de ser feliz de acordo com a sua visão fraterna de mundo, constrói uma cooperativa de costureiras e proporciona oportunidades para outras mulheres.
Assim, há dois elementos que o autor valoriza, que mostram as bases de uma outra sociedade: a organização econômica de um empreendimento autogestionário, ou seja, sem patrões e não pertencente ao Estado, assim como posturas que expressam coerência com uma visão de mundo fundamentada na solidariedade em forma de reciprocidade e respeito mútuo.
A compreensão de Tchernichevski é que a construção da nova sociedade, justa e solidária, a utopia mais bela de um ser humano, tem que se fundamentar em mudanças que não se limitem ao caráter econômico, mas também e, principalmente, no caráter comportamental. Em “O que fazer?”, a mulher protagonista se emancipa integrando um empreendimento econômico solidário, faz suas escolhas livremente e é respeitada por seu companheiro. Na sociedade sugerida, o patriarcado é superado.
Ressalte-se que, apesar de o romance que aponta a autogestão como modo de organização da produção ter motivado os trabalhadores à Revolução na Rússia, posteriormente a organização da economia foi centralizada integralmente no Estado Soviético, sob o comando partidário.
Não houve qualquer estímulo ou apoio à autogestão e, após a ascensão de Stalin ao poder, ocorreu um quadro de repressão que não se pode justificar. Trata-se da antítese da sociedade proposta por Tchernichevski. No entanto, as características do Homem Novo, ou seja, dos seres humanos da sociedade fraterna, estavam lançadas.
Após a revolução cubana, Che Guevara visitou alguns países socialistas. O primeiro deles foi a Iugoslávia, em 1959, conhecido por ter construído um socialismo que objetivava a autogestão, com as empresas e a economia sob a gestão dos trabalhadores.
Che passou uma semana naquele país e a sua estadia teve a seguinte descrição por Jorge Castañeda, no livro “Che Guevara: a vida em vermelho”: “Era o primeiro país socialista que ele visitava, ainda que se tratasse de um socialismo ‘sui generis’; ele identificou alguns aspectos que o atraíram, por lhe parecer aplicáveis em Cuba, e de qualquer forma dignos de elogio. Para Guevara, é talvez o mais interessante de todos os países visitados”.
Fidel Castro, em entrevista a Ignacio Ramonet no livro “Fidel Castro: biografia a duas vozes”, afirmou que Che visitou até a Iugoslávia, “apesar da autogestão e de todas aquelas coisas que a mim, realmente, não agradavam muito. Porque uma cooperativa tinha hotéis e tinha tudo, e eu já havia visto que, às vezes, em vez de se dedicar à agricultura, dedicavam-se ao comércio e ao turismo”. Fidel entendia que cooperativas deveriam se ater, sobretudo, ao setor primário da economia, ou seja, não acreditava na autogestão em diferentes setores.
Cuba reproduziu o modelo econômico soviético, certamente devido aos ataques e bloqueio econômico em ampla escala territorial, mantendo as atividades econômicas sob a gestão do Estado.
Somente a partir de 2006, iniciou um processo de “atualização do socialismo”, com o apoio ao trabalho autônomo de 201 profissões, inclusive possibilitando a instalação de restaurantes privados, os paladares. Posteriormente, em 2011, estimulou a ampliação do número de cooperativas. O governo cubano aposta na pluralidade da economia para a sua dinamização, com destaque para o fortalecimento da livre associação de trabalhadores para produzir, distribuir e prestar serviços.
Cuba jamais deixou de envidar esforços para construir o que Che Guevara definiu como Homem Novo e transformou esse objetivo em uma prática pedagógica e militante. Para Che, a formação no país deveria priorizar nos cubanos o pertencimento coletivo, com uma postura humanista, com fundamentação na simplicidade, organização e disciplina; sendo determinante o desprendimento do individualismo para a realização de trabalhos voluntários. Ele mesmo os realizava e até o presente nas escolas há estímulo para a sua adoção.
Che era um crítico do individualismo, característica central do Homo economicus educado no sistema capitalista para competir e não para cooperar. Afirmava que o coletivismo, como parte do novo sistema de valores, deveria estar vinculado à ação consciente e à capacidade de autodeterminação dos cidadãos. Assim, o desenvolvimento econômico do país estaria relacionado ao bem-estar de todos os cubanos como resultado de uma ação coletiva.
No Brasil, foi Paul Singer quem propôs a organização da economia baseada na reciprocidade e vinculada a uma forma de viver que proporciona bem-estar para os trabalhadores. Ao longo da sua vida, o professor se dedicou a várias atividades e todas tinham o mesmo objetivo: a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Quando jovem se engajou em um coletivo que tinha o objetivo de viver em um Kibutz em Israel.
Posteriormente, decidiu que a construção do socialismo teria que ser no Brasil. Trabalhou como técnico em uma empresa de elevadores, foi um dos líderes da greve de 1953 dos metalúrgicos, destacando-se pela maturidade, sabedoria e firmeza.
Estudou economia já maduro, foi professor universitário, estudou e traduziu a obra de Karl Marx, dedicou-se a popularizar o pensamento de Rosa Luxemburgo, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, foi secretário de planejamento na prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina, fundador e coordenador acadêmico da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo, autor de diversos livros e titular da Secretaria Nacional de Economia Solidária.
O Professor era admirado e muito respeitado por todas as pessoas que o conheceram, em particular pelos militantes do movimento de economia solidária. Encontra-se na visão de mundo e no comportamento do Professor, as características dos personagens de Tchernichevski que tinham uma postura humanista para a construção de outra sociedade, assim como aquelas do Homem Novo, de Che Guevara, engajado na construção coletiva tendo a cooperação como princípio.
Nesta sexta-feira 16 de abril de 2021, faz três anos que Paul Singer ficou encantado, como afirmou Guimarães Rosa, referindo-se ao falecimento, à partida dos seres humanos.
Coincidindo com o terceiro ano da sua ausência física, foi apresentado o filme “Paul Singer, Uma Utopia Militante”, do diretor Ugo Giorgetti e idealização de Marcos Barreto e Fernando Kleiman. Esse fato se deu no 26º Festival Internacional de Documentários “É Tudo Verdade”.
Em nota, a equipe de produção afirmou que em três dias ocorreram 4 mil visualizações do filme, o que é algo inédito no festival. Importante ressaltar que esse documentário foi feito com recursos de um financiamento coletivo – crowdfunding – e pelo engajamento voluntário do diretor e de vários profissionais de excelente qualidade.
A mobilização para realização do filme e o interesse despertado para assisti-lo provocam satisfação por se tratar de uma pessoa querida, com uma trajetória profissional e política brilhante e que tinha diversas qualidades como empatia, capacidade de ouvir o outro, dedicação aos estudos e forma respeitosa e dialógica como se relacionava nas aulas que ministrava e nos empreendimentos econômicos solidários que visitava.
Além dessa satisfação, um sentimento mais amplo que desperta é a esperança, pois Paul Singer representa, com suas ideias e comportamento, a referência e possibilidade de construção de um Brasil solidário.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista