“Sim. As palavras podem ser ‘impotentes’ –
porém as palavras são tudo o que possuímos
para nos escorarmos contra nossas ruínas,
já que temos uns aos outros”.
(Joyce Carol Oates).
Minha filha é uma leitora voraz. Desde muito pequeninha, lê o que lhe chega à mão com muito entusiasmo. Raramente descarta algo. Tem suas predileções, obviamente, mas sabe que nenhuma leitura é em vão. Recentemente, durante uma visita à casa de meu casal predileto, Stéfanis e Soledad, recebi de meu amigo uma edição de Coiote, de Roberto Freire, com a recomendação de entregá-lo a Júlia. Foi o que fiz, apenas depois de degustá-lo. Quando mais novo, li “Sem tesão não há solução” e “Cléo e Daniel”, mas foi a autobiografia “Eu é um Outro” que me fez idolatrar Roberto. No início da minha vida adulta, sem dúvida me espelhei nele. Stéfanis, que uma parte das pessoas conhece pelo sobrenome Caiaffo, foi um de seus discípulos, trabalhou como somaterapeuta, e por isso sabia o que queria ao oferecer o romance para uma garota adolescente. Júlia se apaixonou pelo Coiote (quem não se apaixona?), o ser em estado puro que Roberto inventou.
Passamos a conversar sobre o livro: eu, que hoje me sinto Rudolf, o solitário narrador da história, e ela, uma coiote em potencial. Têm sido ótimas nossas confabulações, sobre as possibilidades e limites da liberdade, sobre aceitar-se estranho numa sociedade absolutamente incompreensível, sobre as rotas de fuga ou a falta delas. Chegamos à conclusão de que nós dois queríamos mesmo era levar um lero com Manó, o duende amigo do Coiote, ele sim um sábio transcendental. Este fim de semana, estava lendo “A História de uma Viúva”, de Joyce Carol Oates, e me lembrei de uma passagem do Coiote, em que Rudolf discorre sobre as várias drogas à nossa disposição e afirma sua predileção pelo álcool.
Eu nem gosto de usar a expressão drogas. Prefiro psicoativos. Lembrei-me dessa discussão porque Joyce, em seu livro, relata que só passou a compreender a adicção alheia depois que perdeu seu marido e passou a usar antidepressivos. Eu usei antidepressivos por um tempo. Uns meses antes de Lia morrer, não estava mais aguentando de dor. Vê-la definhando, o corpo emagrecendo, as dores aumentando, sua frasqueira de remédios cada vez mais cheia de pílulas de diferentes cores e tamanhos, a falta de ar, a insônia, a irritabilidade, me afetavam e eu não podia, nem queria, surtar, afinal, quem estava doente era ela. Eu tinha de ser forte, embora não conseguisse mais. Diante disso, marquei consulta com um psiquiatra e fui em busca de alguma pílula mágica que me aliviasse. O psiquiatra, que é também psicanalista, ouviu minhas queixas e contestou-me avaliando que eu estava bastante consciente de meu problema e que a melhor opção seria começar imediatamente com as sessões de terapia. Em paralelo, diante da minha insistência, receitou-me um antidepressivo “leve”, cujo uso contínuo não era totalmente incompatível com o álcool.
Saí da consulta convicto de que não queria conversar sobre minhas dores com nenhum estranho, mas feliz pela receita obtida. Corri para a farmácia, comprei a droga (psicoativo?), e fui pra casa. Durante os primeiros quinze dias, adaptei-me ao medicamento, cujo primeiro efeito foi cortar toda e qualquer libido. Sossega leão. Ocorre que, como Rudolf, minha droga, a que me governa, é o álcool, e, embora tenha diminuído seu uso, não o cortei por completo. Passei a consumir simultaneamente antidepressivo e álcool. E, dopado, segui em frente.
* * *
A primeira vez que tomei um porre eu tinha menos de quinze anos. Na adolescência, beber se mostrou um caminho rápido para superar a timidez e o sentimento de não pertencimento que Jundiaí me causava. Nos anos de faculdade, descobri a boemia, e caí de cabeça na noite indisciplinada. A noite da política e dos poetas. Eu e Lia, namorados, éramos bons de copo. Ela, inclusive, recebeu de um amigo nosso o apelido de Jorjão, uma espécie de reconhecimento por suas proeminentes características “masculinas” para beber, com grande disposição e resistência. Com o tempo, essa alcunha não lhe faria mais sentido, mas aos vinte e poucos anos, bem me lembro, ela se vangloriava desse seu lado “macho”, do respeito conquistado perante os garotos. Outra época, em que discussões sobre as formas de dominação cultural patriarcais não estavam na ordem do dia.
Beber para festejar, para conversar, por tudo e por nada, na praia ou na montanha, em dias chuvosos ou de sol, para dormir ou para despertar, para rir ou para chorar, para lembrar ou para esquecer, em casamentos, enterros, churrascos, festas infantis, em dias santos ou profanos. Beber um pouquinho todo dia, ou um montão várias vezes, até apagar, não se lembrar, vomitar. Sem limite. Com o tempo, em doses cada vez maiores, porque assim é o corpo, se habitua e pede mais.
Ao longo dos anos, o álcool sempre se fez presente em nossa vida. Com parte de sua família paterna, criamos, de gozação, a Igreja Quadrangular da Terceira Teta de Badebec, em honra à deusa do Pantagruel de Rabelais cuja terceira teta verte vinho, não leite. Os amigos do Choro de Bolso fizeram uma composição em nossa homenagem que se chama Espumante, porque sempre eram recebidos com um Salton geladinho ao chegarem em nossa casa. Em muitas ocasiões, a bebida trouxe agradável estímulo e cor aos dias, mas em outros foi uma péssima companhia, causando conflitos, até traumas.
Com o tempo, Lia foi percebendo que esse culto ao álcool não lhe agradava. A incomodava o fato de eu, principalmente em momentos de extrema pressão, recorrer à bebida como única válvula de escape. Há cerca de cinco anos, com ajuda de minha antiga terapeuta, concluí que sou um dependente psíquico do álcool. Sou capaz de passar longas temporadas sem beber, como já fiz inúmeras vezes, mas prefiro a companhia da bebida, de uma mesa de botequim, um cigarrinho pra acompanhar. Com a constatação dessa dependência, pude olhar pra isso com maior atenção e desenvolver outros mecanismos para me relacionar com a compulsão.
Entre 2016 e 2017, vivemos uma de nossas melhores épocas juntos, o que nos projetava um futuro ainda mais radiante. Ela, com seus aprendizados do Sagrado Feminino, rompeu correntes que a aprisionavam a uma certa conduta imperial. Eu, na virada do meu quinto setênio, voltei a me exercitar, passei a correr 10 quilômetros ao menos três vezes por semana, revi minha rotina alimentar, e o álcool passou a ser apenas uma companhia para momentos específicos de prazer, não um companheiro cotidiano. Emagreci, me fortaleci, recuperei a autoestima. A felicidade está sempre à espreita. Minhas atitudes a faziam feliz. Com ela feliz, eu ficava feliz. Éramos felizes.
Percebi que o problema não é o psicoativo, mas o excesso. Serres diz que o melhor remédio contra o alcoolismo é “procurar o sabor, a estética, e não a embriaguez diária: o hábito faz o alcoólatra”. Dependentes químicos não podem brincar com a quantidade. Basta uma gota pra terem recaídas e voltarem a beber como antes da abstinência. Não é o meu caso. Eu consigo jogar com os números, mas sucumbo ao hábito. Eu gosto de beber. Eu gosto da boemia. Mas qual a dose exata?
A partir de 2018, quando descobrimos que as dores que há anos a atormentavam eram um câncer assassino, fui entrando numa nova espiral corrosiva de uso de álcool. Sem recorrer a outros suportes que me fazem bem, como os exercícios físicos, as terapias e as práticas de autocuidado, era na bebida que descontava minhas dores. Em minha defesa, posso dizer que, na maioria dos momentos que ela necessitou de meu apoio, encarei o desafio de cara limpa. Até tentei pedir ajuda. Marjorie, minha professora de ioga, foi uma das pessoas que me orientou nesse período. Mas eu estava dilacerado. E houve situações em que me entreguei à embriaguez e me ausentei. Meu corpo até podia estar presente, mas minha alma estava anestesiada pelo efeito cumulativo da bebida.
Já me culpei muito por isso. Só comecei a me perdoar depois de sua morte, quando li o livro de Ken Wilber, Graça e Coragem, sobre a história de amor entre ele e sua mulher, Treya, que também morreu de câncer. Em uma carta em que elabora sobre o lugar do cuidador, Wilber fala de dois problemas que caracterizam a emocionalidade do companheiro ou companheira de um doente terminal. O primeiro movimento é suprimir sua própria dor, porque ela sempre é menor do que a da pessoa que você ama. E justamente isso engendra o segundo movimento, que é resultado do acumulo de silêncio ao longo dos meses, convivendo com a dor alheia sem que suas dores sumam. “Os problemas aumentam; você aperta ainda mais a tampa; eles reagem com força renovada. Você começa a ficar meio esquisito. Se for introvertido, começa a ter pequenos achaques; sua respiração fica mais curta; cresce sua ansiedade; ri muito alto; bebe uma cerveja extra. Se for extrovertido, você explode em momentos totalmente inadequados; tem acessos de raiva; sai do quarto batendo a porta; quebra coisas; bebe uma cerveja extra”. Eu fui um misto de introvertido e extrovertido, em meus rompantes, e sempre recorri a muitas cervejas extra.
* * *
Não é fácil escrever sobre isso, mas é necessário. É parte da minha busca pela cura, não apenas do luto, mas das neuroses que me governam. No início do ano passado, senti que nem o álcool dava conta de aplacar momentaneamente a tristeza. Foi quando resolvi procurar o psiquiatra.
Joyce, em seu livro, fala da dependência de remédios que desenvolveu depois da morte de seu marido: medicamentos para dormir e fortes antidepressivos. Eu, cerca de um mês e meio depois da morte da Lia, resolvi que não colocaria nunca mais um antidepressivo na boca. Simplesmente parei, sem desmamar. Passei uns bons dias absolutamente zureta, como se estivesse numa tormenta em alto mar. Mas insisti. Naquele período de abandono das pílulas que brocham, também não bebi.
Desde então, tenho alternado temporadas abstêmio e outras de consumo cotidiano de álcool. No fim do ano, fui diagnosticado com esteatose hepática, nível dois. Comecei a me tratar. Os exames apontaram que não há grandes riscos de o caso evoluir para algo pior, como uma cirrose. Não agora. A gordura no fígado é um reflexo dos excessos. Para desaparecer, disse a médica, a receita é simples: se reequilibrar, fazer exercícios moderados, dar atenção à alimentação. Ou seja, assumir uma conduta menos autodestrutiva. Mas não é fácil mudar hábitos, sobretudo em meio ao luto, ao Coronavírus, e sob o governo de Bolsonaro.
Antes de Lia receber o diagnóstico de sua doença, eu raramente bebia sozinho. Em meio à pandemia, nesta solidão forçada que os tempos nos impuseram, não foram poucas as noites nas quais a bebida foi companhia para minhas memórias e meu desespero. Sempre admirei demais as pessoas que conseguem atravessar esta existência de cara limpa e com disciplina. Para mim é muito difícil. Joyce era uma dessas pessoas, mas conta que o luto a transformou. “Enquanto na minha vida antiga eu acreditava, com convicção moral de colegial, que o vício em drogas, alcoolismo e suicídio – o colapso geral de um indivíduo – sugeria alguma forma de abandono espiritual, que poderia ser evitado com a força de vontade – agora acredito no exato oposto”, escreve. “O que me espanta é que haja tantos que não sucumbem. Tantos que não se mataram…”
O álcool sempre ajudou a jogar meu ego pra fora da cabine de comando. Eu sinto assim. O que poderia explicar porque gosto tanto de beber. E isso também pode ter a ver com a presença da morte em minha vida. O ceifador do Tarot rege minha personalidade e meus sentimentos. O número 13 me conduz. Ouço Blake recitando em meu ouvido adolescente um de seus provérbios do inferno: “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”. O mundo dói. Sempre doeu. Como escapar? Por que não a euforia? “Ame e dê vexame”, nos ensinou Roberto. “Sem tesão não há solução”. Sou e quero continuar sendo intenso. Cada vez mais livre, como um coiote. Mas quero fazer isso sem excessos, porque já aprendi o que tinha para aprender nessa rota que até aqui percorri.
Lia se preocupava comigo, em como essa minha dependência se manifestaria depois de sua morte. Não era para menos. Eu também me preocuparia se estivéssemos em lugares trocados. Recebi e ainda recebo, com certa paz no coração, o julgamento de pessoas que jamais estiveram em situação parecida com a minha. Ainda bem que tenho alguns bons e compreensivos amigos que sabem como segurar minha mão. Porque não tem sido fácil, mas mesmo assim tenho procurado treinar para escapar das armadilhas que já conheço. Joyce, em uma outra passagem de seu livro, escreve: “onde há sangue na água, pode haver uma criatura se debatendo, desesperada para sobreviver. Serei essa criatura, não desistirei. Você vai ter que viver. Você não tem escolha”.
Eu não tenho escolha. Eu tenho que viver. Até a última gota…
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista