“Somos os que acendemos o amor para que dure
para que sobreviva a toda a solidão”. (Juan Gelman).
Não sei que horas são. Sei que é tarde. Porque está escuro, faz tempo que o sol se pôs e ainda demorará algum tempo para que volte a nascer. Sei que há uma lua cheia no céu, mas ela está encoberta pelas nuvens. Sei também que há um eclipse em curso, ou houve, mas não posso vê-lo, apenas senti-lo debaixo de minha pele, como se minha fáscia fosse de lava. Tudo queima.
Levanto-me, deixo a cama para trás, e sento-me em uma espreguiçadeira no quintal. Fecho os olhos, faço algumas respirações mais fortes, e me entrego às memórias, a um turbilhão de vozes e imagens de meu amor com Lia, os encontros, desencontros, os eventuais acertos e omissões, cenas em profusão. Rogo a Deus, num rompante de desespero, apenas mais uma hora ao lado dela, para abraçá-la e dizer, como disse inúmeras outras vezes, que a amo e a quero eternamente a meu lado.
Ainda de olhos fechados, um tanto sonolento, peço um sinal de sua presença, mesmo que espectral. Qualquer sinal. E sinto um toque no meu ombro. Que susto!
Olho e vejo Júlia, minha filha. Ela também está assustada, até mais que eu, devido à minha reação:
– Eu achei que você estava dormindo, pai!
– E eu que você era algum espírito da madrugada, filha!
Caímos na gargalhada.
Ela senta em meu colo, como faz desde que nasceu, mais de dezesseis anos atrás. A diferença é que, moça feita, mal cabe entre meus braços, mas nem ligamos para o desconforto físico. Recostados na pequena espreguiçadeira, ela com a cabeça em meu peito, escutamos apenas o silêncio, um ou outro motor ao longe. Nada poderia ser mais acolhedor do que nosso aconchego naquele momento da madrugada, sob o efeito psicodélico dos astros, que dificulta o sono.
Conversamos, intimamente. Pergunto se acha que Lia pode nos ver. Ela diz que sim, que um dia voltaremos a nos encontrar, em um lugar melhor que este aqui, onde nossa família voltará a estar reunida, mas não como antes da morte quando éramos Os Incríveis.
Ela propõe irmos ver o nascer do sol na praia. Eu digo que temos compromissos inadiáveis pela manhã e proponho fazermos uma meditação juntos. Ela topa. Voltamos ao quarto e em dez minutos estamos dormindo.
Antes do cochilo que precedeu minha ida ao quintal, eu havia relido mais uma vez Tlön, Uqbar e Orbis Tertius, de Borges. Nesse conto, o escritor argentino trata de um país inventado, que se desdobra em um planeta inventado por uma conspiração clandestina que queria libertar toda invenção. Como tudo dele, é um texto genial, labiríntico, que explora os limites entre ficção e não ficção, entre imaginação e realidade. Ao despertar, escrevo para uma amiga reportando minha madrugada insone e lhe digo que a literatura me faz suportar a ausência de sentido de todo o resto.
Na mensagem, também lhe pergunto: e se estivermos aqui apenas sonhando o que já existiu?
A metafísica, diz Borges no conto, é um ramo da literatura fantástica.
Dominado pela saudade, havia pedido a Lia um sinal de sua presença. Quero acreditar que ela o enviou ao fazer chegar a mim nossa filha, para que nos cuidássemos durante a insônia.
* * *
Dois dias atrás. Acabo de chegar em casa, por volta das duas da manhã. Ainda estou bem incomodado com a péssima partida feita pelo Palmeiras. Não devia ter assistido na casa do Victinho, porque deu azar. Ao menos, ficamos vendo cenas de jogos clássicos, como aquele 6 x 1 no Boca Juniors, na década de 1990, o que contribuiu para uma pequena melhora em meu humor. Queria que o futebol não me afetasse tanto, mas afeta.
Ao deitar na cama, acesso o celular com a pretensão de que seja a última vez no dia e encontro um vídeo comovente, enviado por uma amiga. Não sabia que em 8 de dezembro se comemora o dia de Oxum. No vídeo, ela, devota da mãe ancestral, registra imagens de um rio de águas correntes barrentas enquanto recita uma benção evocando o amor profundo que Lia trouxe para este plano. Senti-me protegido, grato, enternecido e saudoso.
Em resposta, lhe escrevo que havia passado uma semana muito difícil, ouvindo em loop a canção de Fito Paez “Dejarla Partir”, na voz de Liliana Herrero. O verso “eu fiz para quebrar, eu fiz para quebrar-me a mim” a machucar-me o coração.
Ela, para minha surpresa, apesar do horário, responde. Também está acordada, às voltas com leituras e escritas. Fazia tempo que não conversávamos. Aproveito a ocasião para fazer um relato mais minucioso de como ando me sentindo e para saber um pouco dela, de suas emoções, pois sei o quanto lhe dói a morte de sua grande amiga.
“Compartilhei a canção contigo porque ela expressa esse momento específico da minha travessia. Quase como se eu tivesse feito uma pausa no Caminho. Um pit stop forçado pelas circunstâncias. Uma recusa de seguir caminhando por conta do mau tempo. Mas já estou me pondo em marcha outra vez, carregando comigo tudo de que melhor vivi, para o que de melhor viverei. E eu sei que ela vai estar ao meu lado nessa aventura, como sempre esteve, porque ela sempre esteve, como eu sempre estive. Isso foi o melhor de nós, do casal Lia e Rodrigo, sem dúvida, nossa escolha reiterada por seguirmos juntos. Eu agradeço todos os dias por ter tido essa oportunidade de partilha. Confesso que queria saber antes algumas coisas que só descobri agora. Pensei nisso vendo o rio barrento e ouvindo a sua voz, nesse vídeo comovente que você nos dedicou. Sinto até que eu talvez soubesse antes, só não sabia nominar. Como você bem sabe, eu finjo saber das coisas. Porque, sobretudo, eu as sinto, e vou me guiando nesse labirinto com meu faro de lobo, conectado às matilhas, cuidando de quem se permite ser amado por mim – pois é um privilégio poder amar e cuidar. O que a Lilica sempre quis pra mim é que eu aprendesse a me amar, que eu aprendesse a estar comigo, e esse segue sendo meu desafio. Tenho trabalhado muito nisso. E sinto que essa é uma longa jornada. Tenho escrito e sonhado muito. Na madrugada passada, em que se completaram sete meses desde sua morte, depois de chorar pra burro, eu sonhei que estava solto no espaço, e que conseguia modular o tempo-espaço. Retroagir 15 bilhões de anos, até o início de tudo. Ou avançar até o presente. Eu não conseguia ir além do presente. Mas eu podia ver todos os momentos de tudo que vivi e de muito antes disso. Eu estava boiando na ausência de gravidade”.
Ela me questiona sobre essas minhas descobertas recentes. E eu respondo, à sangue quente, sem pensar muito, sem perceber algumas ênfases desnecessárias, certa soberba que não me abandona mesmo eu me esforçando muito para isso. Ao menos, há verdade no que escrevo.
“Como escrevi: sinto que talvez soubesse antes, só não sabia nominar. E mais que nominar, eu talvez não conseguisse vivenciar plenamente – e sigo não conseguindo.
1. Não é possível amar livremente sem amor próprio;
2. É só um caminho, isso aqui (o mundo como o conhecemos), um exercício, sem resposta certa ou errada. Só importa a busca. E isso me traz paz.
3. Não há nada mais para fazer senão se dedicar amorosamente ao outro, com verdadeira entrega. Dar e dar e dar sem esperar nada em troca. Sabendo que um dia talvez retorne, ou não.
4. Às vezes, se a gente se conectar de verdade ao presente, até dá pra se sentir feliz – tive duas experiências muito marcantes com a meditação nestes últimos meses;
5. Não há mal nenhum em pedir ajuda.
6. É preciso cuidar do espírito, porque sem isso a gente fica solto no vento da incerteza;
7. Só se sente só aquele que não aprendeu a estar consigo. Eu agora sei que nunca estou sozinho, embora por vezes eu me sinta extremamente só”.
Pela manhã, ao reler o que escrevi, penso que faz sentido.
É exatamente assim que a banda tem tocado.
* * *
Duas madrugadas podem se conectar?
É nisso que penso enquanto tomo uma garrafa de vinho e a embriaguez me faz viajar até meus primeiros anos de São Paulo. Naquela mesa, está o jornalista Aloysio Biondi, meu mestre, em quem tenho pensado demais nos últimos meses. Estamos na Confraria do Queijo e Vinho, há um piano de cauda e já tomamos muita Cuba Libre. Lembro-me de Sergio Amadeu a meu lado. Creio que Irineu Perpétuo também estava. No disco de minhas recordações ouço uns sambas-canção, bonitos e tristes, talvez boleros. Biondi nos olha e diz que o verso mais triste da música brasileira é de Chico Buarque:
“A saudade é o revés do parto, é arrumar o quarto do filho que já morreu”.
A lembrança da frase e daquela noite produz um salto quântico e retroajo para uma tarde em que eu e Lia estamos saindo do Espaço Unibanco de Cinema, em São Paulo. Acabamos de assistir a “O Quarto do Filho”, do diretor italiano Nanni Moretti. Estou devastado, porque a história me remete à morte de meu primo, que bateu o carro quando tinha 19 anos e se foi sem nem dizer tchau.
No filme, Moretti interpreta um terapeuta de meia idade que tem uma família feliz, uma esposa dedicada e dois filhos jovens adultos. Ele e o filho têm uma relação de proximidade. Um dia, o garoto sai para mergulhar e sofre um acidente. Morre. A obra retrata o luto desse pai, dessa família.
Com medo, resolvo revisitar o filme, que à época reputei ser muito bom, pela delicadeza e precisão na abordagem de um tema tão íntimo e doloroso. Não me recordava, por exemplo, que a família do protagonista era, como a minha, formada por quatro membros, sendo os filhos um casal.
Ao digitar “O Quarto do Filho” no YouTube, dou de cara com uma cena em que o pai está em uma loja de discos que costumava frequentar ao lado de seu menino e pede ao vendedor uma indicação de um disco. Ele quer saber se o vendedor se lembra de seu filho. O vendedor diz que sim, porque ele estava sempre por lá.
O vendedor sugere o disco e o coloca para soar “By this River”, de Brian Eno.
Não consigo parar de chorar com os versos “Always failing to remember why we came, came, came. I wonder why we came”. Afinal, por que estamos aqui? Por que as pessoas que amamos têm de morrer? Por que não descobrimos antes o câncer, quando ainda dava para ser curado? Por que a humanidade jamais descobriu a cura definitiva do câncer? Por que a arte tem essa capacidade de nos arrebatar? A canção de Eno é linda, mas eu não devia ter ido rever o filme. Gatilho acionado, o desespero atravessa o corpo como uma Kundalini reversa cuja energia sufoca.
Moretti escuta a música, e diz ao vendedor que ele estava ali para escolher um presente para seu filho morto. Me vi no lugar do personagem, porque também quero presentear minha companheira morta. Pouco tempo atrás, passei pela loja Benedita, no Supercentro Boqueirão, onde costumava comprar presentes para ela: roupas lindas da moda brasileira, adereços como brincos e colares ou calçados. Olhei a vitrine e sem me dar conta percebi que estava escolhendo o vestido que lhe daria para o réveillon, como sempre fiz desde que nos tornamos namorados. Ao notar que era essa a minha motivação, tive vontade de entrar e comprá-lo, mas não o fiz.
No dia em que Biondi morreu, juntamos seus discípulos, eu e Lia entre eles, e tomamos um porre de Cuba Libre, no terraço de um prédio que nem sequer me lembro a quem pertencia. Aquela foi e segue sendo uma das madrugadas mais tristes da minha vida. Biondi teve um aneurisma na horta, que se rompeu vinte anos atrás, em um dia de julho que prefiro esquecer que existiu.
* * *
Quando termina a madrugada? Eu diria que com os primeiros raios do amanhecer. Para ser madrugada, é preciso escuridão. Ou seja, noite e apenas noite. Com a luz, nasce a alvorada e se renova a disposição. A madrugada, não. A madrugada precede a esperança, sua matéria é a solidão, mas não necessariamente a tristeza. Por ser filha dileta da indisciplina, das madrugadas se ocupam os corpos que bailam descontrolados e as bruxas e magos com seus rituais.
Na manhã do sábado passado, depois de uma noitada em que alguns amigos que vieram me visitar vomitaram seu desespero em busca de purificação, percebi que Júlia não estava em casa. Fiquei preocupado. Poucos minutos depois, ela chegou, contando-me que fora ver o dia despertar na praia. Ela estava com essa vontade fazia dias. Mostrou-me algumas imagens lindas do sol invadindo a areia e, rindo muito, exibiu a foto de uma capivara banhando-se calmamente no mar de Santos.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista