“…e esse livro incessante é a única coisa
que há no mundo: melhor dizendo,
é o mundo” (Jorge Luis Borges)
Só você sabia quantas vezes eu quis escrever um romance.
Nas mesas de bar de nossa juventude, era corriqueiro surgirem planos mirabolantes de curtas-metragens, longas de ficção, roteiros que mudariam os rumos do cinema. Entre uma Skol ou uma Kaiser, cervejas que nossos bolsos magros alcançavam, ou um gole de Seleta, artesanal à época, não faltavam aspirantes a criadores de uma arte revolucionária.
Éramos ousados, destemidos, pretensiosos e delirantes. Alguns eram diletantes. Outros, porém, persistiram e deram trato real a seus desejos, tornando-se escritores ou cineastas. Seus trabalhos, bons ou ruins, são parte de nossa época, vestígios de um tempo em que chegamos a crer numa democracia estável.
Você, embora fosse mais reservada e não revelasse facilmente seus planos, também cultivava ambições artísticas. Imaginava um dia contar a história de sua avó, que parecia um enredo do realismo mágico latino-americano. A casa de Londrina, os criados e criadas, as tramas urdidas entre rezas para pastores evangélicos e despachos no terreiro de Umbanda, você adorava colher as reminiscências daquela mulher que só teve irmãos homens, pariu outros quatro meninos, foi eleita a moça mais bonita de sua pequena cidade mineira antes de se casar com seu avô médico e ir desbravar as terras vermelhas do norte do Paraná. Sua avó, que lhe ensinou suas primeiras bruxarias e para quem você pediu proteção e acolhimento nos meses que precederam sua morte.
Recordo-me, o que me faz rir sozinho, do pé de chuchu que tomou todo o quintal, invadindo a casa pelas janelas. Sua avó não queria que cortassem, de jeito nenhum. Um drama tragicômico, que você narrava divertida. Esse episódio é mais recente, mas bem ilustrativo de algo seu que eu amava: o gosto pelo absurdo, pelo nonsense, a percepção do quão surreal é a vida.
Ao longo dos últimos meses tenho escrito sobre nosso amor. Nos textos, que não são capítulos de um romance, mas podem ser considerados crônicas integrantes de um folhetim, você é a personagem principal. Justo você, que bem poderia estar viva para escrever as suas próprias histórias. Não lhe pedi permissão prévia porque não sabia que faria isso. Mas se o faço, é com muito respeito e com o objetivo de honrar sua memória. Sei que a mulher que pinto para os outros é uma versão reduzida daquela que, por 41 anos, bailou neste plano. A Lia, de minhas crônicas, não é você, mas uma criação de meu olhar apaixonado e saudoso. A realidade era melhor e mais bonita.
Só escrevo para fixar, a sangue quente, o que não consigo nem quero esquecer.
Descobri que o luto é paradoxal, porque consiste em um estado de espírito de oscilação permanente. Há semanas em que me sinto mais forte, e isso se expressa nos temas e no teor de minha escrita. Há outras, em que tudo parece desmoronar, como desmoronou aquela falésia na Praia da Pipa, matando um homem que eu conhecia, sua mulher e o filhinho. Ao ler a notícia, não percebi, mas Hugo era o Huguinho, que cresceu no mesmo condomínio onde vivi, em Jundiaí.
Lembro-me dele como um garotinho empedernido que não temia os mais velhos. Pelas matérias jornalísticas, descobri a parte que me faltava de seu destino. Ele, depois da morte de sua mãe, a Cecília, que era vizinha de meu padrinho e de minha madrinha, ganhou o mundo. Cecília morreu vítima de um câncer, meia década atrás. Hugo, então, viajou por vários países e conheceu 24 estados do Brasil, pilotando sua Kombi, ao lado de uma cadela que foi sua fiel escudeira e que também adoeceu de câncer. Há dois anos, havia fixado residência no Rio Grande do Norte, e lá conheceu sua companheira. Nesse período, construiu uma pousada e teve um filho. A ribanceira desmoronou enquanto os três descansavam em uma sombra da praia. Mãe e bebê foram soterrados abraçados.
Quando li sobre a tragédia, com a curiosidade aguçada pelo fato de o personagem ser meu conterrâneo, pensei: “Que sujeito bacana!”. Como você bem sabia, sempre adorei encontrar um maluco desertor de Jundiaí. Um igual, portanto. Outro igual que agora não está mais aqui.
Essa fatalidade, me perdoe, pede um clichê: é impossível prever o que a vida nos reserva. Eu imaginava, e chegamos a brincar disso muitas vezes, que eu envelheceria a seu lado numa Ilha Grega, talvez Santorini, a imensidão do mar azul a nos deleitar. Se fecho os olhos, consigo até ver a velhinha que você nunca será, elegante e altiva, como sempre foi, uma echarpe no pescoço, uns óculos escuros, as unhas pintadas de verde, um vestido leve sobre o corpo esguio.
Domingo passado, caminhando pela orla de Santos, indo votar, lembrei-me da última eleição para presidente, em que você votaria em Haddad mas, de última hora, optou por Boulos, porque ele conversava melhor com suas convicções. Fazia tempo que não passava em frente de nosso apartamento da Ponta da Praia. Confesso que não foi fácil, aquelas pastilhas amarelas e brancas da fachada, os cobogós, que tanto lhe encantaram quando o visitamos pela primeira vez.
Creio que você ficaria feliz em saber que Guilherme foi para o segundo turno na disputa pela prefeitura de São Paulo e que pode vir a ser prefeito da capital ingovernável.
Aqui, na nossa cidade, a ideia que discutimos na praia, entre uma caipirinha e outra, sob seu olhar atento, prosperou. Um grupo muito especial de pessoas formou o Coletivo Santos Progressista e quase foi eleito. Faltaram pouco mais de duzentos votos para uma vaga, mas foi uma campanha linda. Fico em dúvida se você votaria em nossa chapa ou se optaria pelo mandato coletivo das Marias, que reunia apenas mulheres feministas. Algo me diz que você iria com elas.
Entre os romances que comecei a escrever e nunca finalizei, há um baseado em uma de nossas viagens para Buenos Aires, a primeira, depois do nascimento de Júlia.
Foram dias incríveis, com encontros mágicos, certamente inesperados. Para narrar essa história, baseada em fatos vividos e outros inventados, criei uma trama absolutamente óbvia: um aspirante a escritor que parte em busca de recuperar a vida de um outro escritor, no qual ele se espelha. Eu em busca de Francisco Urondo, o poeta e jornalista assassinado pela ditadura militar argentina e que eu havia descoberto lendo algum comentário sobre Operação Massacre, de Rodolfo Walsh. Urondo segue como uma de minhas obsessões literárias. A versão oficial dizia que ele, cercado pelo exército, em Mendoza, para onde fora mandado pelo comando Montonero, cometera suicídio, com uma píula de cianureto. Nessa operação, Paco estava acompanhado de sua companheira e de sua filha recém-nascida, que foi tomada pelos seus algozes. O casal foi assassinado por um tipo de gente que não só queria vê-lo morto, expropriado de sua linhagem, como precisava destruir sua reputação.
O romance não prosperou porque não consegui encontrar um lugar para você. O que vivi naqueles dias, vivi contigo. O que era meu, tornou-se nosso. Mas tive receio de transformá-la em minha personagem, não achava que você merecesse um lugar de coadjuvante. Um medo que sua morte apagou, de um jeito quase natural. A personagem agora é tudo que tenho.
Numa noite recente, em que estive delirando depois de ler algumas páginas de Pirandello, percebi que você levou consigo parte importante de minhas memórias, porque foi a única testemunha de momentos essenciais da minha vida. Eu posso relatar o que ocorreu naqueles dias em Buenos Aires, mas quem poderá confirmar o que digo? Quem poderá me ajudar a dar contorno se algo me escapar? Certos episódios só são críveis se forem corroborados. Sei bem disso porque não foram poucas as vezes que ao relatar um determinado caso para amigos em comum, você me corrigiu ou fez acréscimos que tornaram o registro mais preciso e saboroso. E vice-versa.
Quem acreditaria que descobrimos o filho de Urondo, Javier, porque paramos numa loja de discos de San Telmo na qual tocava música brasileira e puxei papo com o atendente, Francisco, Pancho, Panchito, que era músico e também filho de um desaparecido político, um dos melhores amigos do poeta, e ele pediu para ver os livros que eu carregava numa sacola, entre os quais Los Pasos Previos, o único romance de Urondo, o que o fez ficar estupefacto e me perguntar porque um brasileiro procurava por Urondo, e eu expliquei que não sabia, mas me sentia atraído por ele, sua poesia, sua militância, e que Francisco, Pancho, Panchito telefonou para Javier e reservou para nós uma mesa em seu restaurante, Urondo’s Bar, que nós nem sabíamos que existia e ficava em um bairro afastado do circuito turístico, e que cerca de uma hora antes de conhecermos Francisco, Pancho, Panchito, quando caminhávamos por San Telmo, ao lado do mercado, eu disse a você, “eu moraria aqui”, e mostrei uma casa, e você respondeu, “eu também” e essa casa era justamente a casa de Javier, o que viríamos a descobrir numa madrugada depois de irmos ao Urondo’s Bar jantar e sermos recebidos por Sebastián, seu sobrinho e neto do poeta, que era o somellier do restaurante e simpatizou conosco, mais com você, obviamente, e que Javier nos propôs, quando fechou o restaurante, que tomássemos as cervejas artesanais que ele tinha para os amigos, numa regra simples, para cada uma que comprássemos, ele colocava outra por conta da casa, e que saímos do Urondo’s Bar bêbados, felizes, às cinco da manhã e ele, antes de nos levar ao hotel Uruguay, a espelunca onde estávamos hospedados, passou naquela casa que seria nossa, mas era dele, a de San Telmo, e nos presenteou com uma antologia de poemas de Urondo, que havia procurado e não encontrado nas inúmeras livrarias que visitamos nos dias anteriores a esse encontro em que ganhamos o livro autografado?
Repito: você era única pessoa que poderia atestar a veracidade desse fluxo de acontecimentos. Era você a pessoa que estava ao meu lado o tempo todo, nesta e em outras aventuras.
Por que não consegui fazer dessa história um romance se ela se revelou a nós praticamente pronta? Por que não pensei em fazer de nós dois os protagonistas? Dois escritores jovens, parceiros que se amavam profundamente e partilhavam gostos semelhantes, em uma travessia por uma cidade desconhecida em busca de um escritor que fora esquecido por obra da maldade humana? Do que estávamos em busca quando partimos para Buenos Aires, juntos, anos atrás? Só você sabia quantas vezes eu quis escrever esse romance. Só você sabe que, ao seu lado, eu não o escrevi, eu o vivi.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista