Estávamos às vésperas do aniversário de Júlia, nossa primogênita. Já não tenho certeza se de 2006 ou 2007, creio que ela faria três aninhos. Os números somem com o tempo. Lia resolveu fazer um grande encontro no salão de festas do prédio em que morávamos, localizado na quadra 403 norte de Brasília. Uma festa inspirada no Sítio do Pica-pau Amarelo.
Excelente produtora, rapidamente descobriu uma loja especializada em itens de aniversário e foi averiguar as decorações disponíveis. Recordo como se fosse hoje sua indignação ao regressar da incursão comprovando a escassez de adereços inspirados em Monteiro Lobato.
Ela se perguntava, usando uma expressão que lhe era peculiar: “Como assim?” Afinal, o sítio não era a mais popular história infantil brasileira? Como poderia ser substituído por algum modismo de origem estadunidense? É bom registrar que, naquela época, os questionamentos sobre racismo na obra de Lobato não estavam na ordem do dia.
Revoltada com o que considerou um descaso inaceitável com a cultura brasileira, não se rendeu à globalização manifesta em pratinhos, copinhos e chapeuzinhos do Nemo, o peixinho palhaço da Disney Pixar, e resolveu produzir tudo, absolutamente tudo, das comidas à decoração. Para auxiliá-la, convocou nossa comunidade de amigos e organizou um mutirão.
Conseguiu comprar alguns dedoches de pano em uma tenda de brinquedos educativos localizada na Feira da Torre. Com o apoio de uma amiga, talentosa diretora de arte, confeccionou os itens de decoração para a mesa de guloseimas e para as paredes do salão, que ao final de tanto esforço ficou mesmo parecido com o próprio reino das Águas Claras.
Aloísio Milani, que à época era o mais assíduo dos amigos, alugou duas fantasias, uma de Cuca e outra de Marquês de Rabicó. Eu assumi o papel da vilã e Alu o do porquinho. Tais foi Dona Benta, Alci Tia Anastácia, Spensy o Saci, e Juju, ora, Juju era Emília, a falante boneca de pano.
Não tenho certeza se alguém interpretou o Visconde de Sabugosa, talvez Álvaro.
Foi um dia muito especial.
Não à toa, quando Lia morreu, seis meses atrás, fotos dessa celebração circularam aos montes entre essa turma querida que fez parte daquele momento tão bonito de nossas vidas, os anos dourados do primeiro governo Lula.
As situações que relato em minhas crônicas talvez não tenham sido exatamente como me recordo. A memória, afinal, é traiçoeira. Mas ao escrevê-las, percebo as emoções ganharem novo corpo e revivo certas alegrias. O que foi passa a ser de novo, agora como palavras duradouras.
Na festa do Sítio, como contei, eu havia me fantasiado de Cuca. Certa hora, entramos no salão, Cuca e Rabicó, e começamos a circular entre os pequeninos, que não gostaram nada da presença da malvadona. Foi um chororô, a criançada desesperada em busca de seus pais.
Juju começou a procurar insistentemente por mim. Perguntava: “Cadê o meu pai?” E as pessoas gritavam: “É a Cuca”. Ela, receosa, mas confiante, se aproximou daquela feiticeira com cabeça de Jacaré e perguntou, olhando nos meus olhos escondidos atrás da máscara:
“Cuca, você é meu pai?”
Não tive outra escolha senão tirar a fantasia e abraçá-la, enchê-la de beijos, sob aplausos generalizados e o alívio da criançada.
Não sei se essa foi a primeira, mas, com certeza, foi uma das mais inesquecíveis festas que Lia organizou para nossos filhos. Bruxa sabida, fazia seus feitiços para deixar um lugar mais bonito e cheiroso, uma comida mais saborosa, uma data especial ser ainda mais especial.
Quando viemos viver em Santos, cidade com abundância de espaços públicos, ficou revoltada com a cultura de buffets do povo da praia, seus salões fechados, climatizados, brinquedos eletrônicos, música alta e comida ruim.
Júlia foi estudar em uma escola no Embaré que diziam ser construtivista, mas era apenas uma instituição tradicional com um leve verniz de novidade. Lia não teve dúvidas: resolveu organizar a festinha de Juju no Jardim Botânico Chico Mendes.
Para quem não conhece esse parque, ele fica na chamada Zona Noroeste, região onde vivem cerca de um terço dos habitantes da cidade, mas que essa mesma gente da praia não costuma visitar. Nós adorávamos frequentá-lo com nossos filhos, para oferecer-lhes contato com a natureza e um ambiente seguro para correr em paz, sem nenhum adulto interferindo em sua autonomia.
Esse jardim botânico, que leva o nome do seringueiro socialista símbolo da defesa da Amazônia, não cobrava, ao menos à época, nenhuma taxa para uso de suas instalações. Fiz apenas uma rápida conversa com o administrador uma semana antes da data em que pretendíamos celebrar o aniversário da Juju. Ele não só nos autorizou como demonstrou alegria pela iniciativa.
O convite enviado aos pais, redigido à mão, explicava o conceito de piquenique e afirmava nosso interesse que as famílias se fizessem presentes, com uma regra simples: garantiríamos comidinhas e bebidinhas para as crianças e aceitávamos contribuições dos que pretendessem permanecer conosco. Foi um sucesso. E, obviamente, sobrou comida.
Alguns convidados jamais haviam pisado no jardim botânico. Lembro-me especificamente de uma das mães que ficou boquiaberta com o que encontrou e não queria ir embora de jeito nenhum. Enquanto desmontávamos o acampamento, ela seguia jogada sobre a toalha quadriculada de chita, esfregando as pernas e pés na grama verde e úmida que nos circundava.
Houve outro caso emblemático, que Lia me relatou. Outra mãe de coleguinha – que havia patrocinado uma megafesta num buffet semanas antes de nosso piquenique – chamou-a de canto para questioná-la sobre o aluguel do parque, se era muito caro. Lia apenas respondeu que o preço estava embutido em nossos impostos.
Foi nessa festa que adotamos nossa primeira gatinha, a Melada, cujo apelido é Mel. Ela estava perdida em um cantinho do parque e foi encontrada pelas crianças durante uma atividade de caça ao tesouro que organizamos. Juju e Chico vieram juntos até mim trazendo-a no colo. Com cara de pidões, perguntaram se poderiam levá-la. Eu, comovido, pedi que falassem com Lia, que não gostava de gatos – como seu pai é alérgico ela desconhecia o universo dos felinos.
Para convencê-la, foi preciso alguma insistência e a intervenção de Márcia, veterinária e também mãe de uma das coleguinhas. Dona de um Petshop perto de nossa casa, se prontificou em cuidar da gatinha remelenta, dar-lhe banho e vacinas, até que se recuperasse por completo e pudesse ir morar conosco. E assim foi. Duas semanas depois, Mel chegou à nossa casa. Não demorou nem um mês para Lia se autointitular rainha das gatas, pois Melada adotou-a como sua dona.
Nestes dias que antecedem o aniversário de 14 anos de Francisco, nosso Chiquinho, são muitas as cenas que projeto em minha tela mental.
A festa do pijama do ano passado, em que mais de dez garotos acamparam em nosso apartamento, com direito a colchões emprestados e guerra de pipoca; o acantonamento de 15 anos para a Júlia no sítio Viramorro, em São José dos Campos, em que levamos a turma toda de van, como numa verdadeira excursão; a festa na praia da Guaiúba, no Guarujá, com recreação programada pelo professor de teatro; a festa na praia de Santos, com direito a banho noturno de mar e relatos posteriores de que os pré-adolescentes jamais haviam se sentido tão livres.
Como esquecer do grande campeonato por ela organizado, para o qual Chico inventou dois times de futebol e desenhou as camisetas? Com ajuda de minha mãe, a vovó Solange, foram confeccionados uniformes para serem distribuídos aos jogadores como lembrancinha. Realizado na quadrinha do Boca Juniors, na Ponta da Praia, o clássico FEN x Fibol – não faço a menor ideia de onde ele tirou esses nomes – ainda costuma render resenhas acaloradas e relatos apaixonados.
Em todas essas festas, fui ajudante de ordens. Cumpria as tarefas a mim designadas com afinco, dedicação e admiração. Lia tomava a dianteira, eu ia atrás. Agora, não me resta outra opção senão assumir uma liderança que jamais reivindiquei. Ocorre que, para piorar a situação, estamos no meio de uma pandemia global, e aglomerações não são aconselháveis.
Não sei muito bem o que vou fazer. Talvez um churrasco no nosso quintal, se o tempo permitir e os protocolos de segurança também. Será o primeiro aniversário de um de nossos filhos em que ela não estará conosco, o que torna tudo bem diferente.
É óbvio que a saudade fica ainda mais doída nessas horas. Por outro lado, sinto a obrigação de reverenciar sua sabedoria e realizar uma festa deliciosa para nosso menino. Tenho certeza que é o que ela quer que eu faça e que estará conosco, esteja onde estiver. Afinal, com sua dedicação e criatividade, ela nos ensinou que o melhor da vida é festejar.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista