Era uma noite como muitas outras. Estávamos deitados em nossa cama, ela com a cabeça em meu ombro, recebendo cafuné em seus cabelos, acomodada naquele que dizia ser o melhor lugar do mundo. Pouco antes, durante o banho, eu havia chorado escondido, e tentava não demonstrar meu desassossego, o que era impossível.
Estava revoltado com aquele câncer de pulmão, sua sentença de morte. Ela também estava triste, mas de forma compassiva dava mostras da desenvoltura com que conduziria sua dança com a doença. A conversa girava sobre nossos caminhos e descaminhos e eu então disse que achava seu adoecimento muito injusto.
Ela imediatamente me repreendeu, com sua leveza e graça habituais. “Injusto não é o meu câncer. Injusta é a condenação sem provas de Lula, a prisão de Mandela por tantos anos, o assassinato brutal de Marielle”. Eu concordei. Sigo concordando.
Recordei-me dessa conversa várias vezes esta semana, lendo os textos em homenagem a Marielle Franco, que teria feito 41 anos no dia 27 de julho. Não tinha me dado conta de que ela e Lia tinham praticamente a mesma idade, ambas só um pouquinho mais velhas que eu.
De tudo que li e vi, tocou-me especialmente a carta pública de sua irmã, Anielle, e uma foto publicada nas redes sociais em que ela escorrega sorridente na Pedra do Sal, no Rio de Janeiro, berço de uma roda de samba de alegria transbordante. Já escorreguei muitas vezes naquela mesma pedra, em noites regadas a cerveja, caipirinha, abraços e afagos.
Marielle teve sua existência neste plano interrompida em 14 de março de 2018, quando milicianos covardes, a mando de gente graúda da política, dispararam tiros contra seu carro, executando-a e também Anderson Gomes, seu condutor naquela noite.
A repercussão global do episódio fez dela um símbolo internacional, mas não era nisso que eu pensava ao ler os textos e ver as imagens.
À flor da pele por meu luto pessoal, conectei-me à dimensão íntima de sua morte, aos sentimentos de pessoas que não conheço pessoalmente, mas pelas quais tenho carinho e admiração: seus pais, Marinete e Antônio, que Anielle revela só voltaram a sorrir recentemente quando a neta mais nova nasceu; a Monica, sua companheira, com quem conversei imaginariamente sobre a solidão da viuvez e a dor abissal pela perda de um grande amor; a Luyara, sua filha, que como meus filhos passou a atravessar a existência sem ter alguém para chamar de mãe.
Nesse mergulho reflexivo, recorri a meu diário e nele encontrei o que havia escrito sobre o mesmo assunto, em 14 de março de 2019.
“Há um ano, minha percepção da morte de Marielle era fria, porque eu apenas a analisava no marco da macropolítica. Eu não percebia o significado dela para todas as mulheres negras que lutam, que militam; eu não entendia como a morte dela é, sobretudo, uma morte causada pelo racismo e pelo feminicídio. Eu, como muitos dos brancos que me cercam, a transformei apenas em um símbolo, e fui vomitando minhas teorias a respeito de algo que desconheço. Foi um basta do lado de lá da linha, em uma ligação telefônica para uma amiga ativista do movimento negro, que serviu-me de alerta. Ainda bem que ela teve essa paciência comigo, me dando a chance de buscar ser melhor (…) Há um ano, eu não era capaz de escutar o silêncio. Eu não via o abismo que se abriu diante de nós. Eu estava apenas ouvindo o anjo da história, mas não os sussurros do espírito e a dor das almas, muitas delas executadas junto com Marielle”.
Relendo-me, pergunto-me: “Será que me tornei capaz de escutar o silêncio?”. E penso nas minhas muitas companheiras aqui da Baixada Santista, que esta semana de celebração do Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, estavam protestando pela memória de Teresa de Benguela em frente ao Aquário Municipal da Ponta da Praia. Pouca gente sabe, mas Santos, terra que no passado orgulhava-se de ser o fértil porto da liberdade, é terceira colocada no ranking de segregação racial em nosso país. Volto à minha pergunta, e deixo-a ressoar como um alerta.
Não refuto que o luto seja também uma experiência social, que pode atiçar levantes políticos, como no caso do estudante Edson Luís, na época da ditadura militar, ou mais recentemente de George Floyd, asfixiado por um policial até a morte nos Estados Unidos. Creio, no entanto, que é preciso agregar a essa dimensão sociológica uma percepção sensível dos ocorridos, que leve em consideração os vários significados da morte para as diferentes pessoas afetadas.
Essa consciência me orienta a perceber e respeitar as dores crônicas pela morte de Marielle: a dor íntima de seus familiares, amigos, companheiras e companheiros mais próximos; a dor política, de todas e todos nós que nos vemos como seres comprometidos com os direitos humanos; e uma dor simultaneamente coletiva e íntima que atravessa os corpos das negras, periféricas e LGBTs, que são, elas e seus filhos, o alvo principal da máquina de guerra do racismo.
As reflexões e atitudes de minha companheira diante do câncer demonstraram que não há por que temer a morte quando ela chega pedindo licença. Só resta chamá-la para casa e acolhê-la para uma xícara de chá. Por outro lado, quando ela surge montada no cavalo alado da opressão, jamais devemos naturalizá-la.
Se a morte de Lia, como ela mesma queria, não pode ser lida na chave do justo ou injusto, a de Marielle, sim. Lia morreu em paz, cercada de amor, vítima de uma doença fatal sem cura. Marielle morreu assassinada por homens inescrupulosos que precisam ser julgados e exemplarmente condenados. Creio que somente quando isso ocorrer, sua irmã, seus pais, sua filha, e sua companheira poderão dar por encerrado seu longo processo de luto. Mas a luta, inspirada em sua memória, esta seguirá.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista