O período de isolamento social, consequência da pandemia de coronavírus, parece ter aflorado, pelo menos em parte da população, sentimentos contraditórios. Muitas pessoas, até mesmo especialistas em saúde mental, atestam que a quarentena é território propício para ansiedade, estresse e depressão.
No entanto, para o psicoterapeuta e escritor, Luiz Antonio Guimarães Cancello, não existe uma explicação isolada para as causas do aumento dessas ocorrências durante o isolamento.
“O medo de contaminação pode ser uma delas, mas o fato de que as pessoas ficaram em casa durante três meses ou mais pode induzir quadros psicológicos desfavoráveis”, revela Cancello, em entrevista ao Folha Santista.
Na avaliação do psicoterapeuta, não existe receita ideal para se lidar com o medo. “Lê-se, na imprensa, os mesmos ‘conselhos’, em geral, dirigidos a uma classe social média ou alta, que pode segui-los: exercícios físicos, aprender algo novo, manter uma rotina e a higiene etc. Essas orientações são válidas para qualquer tempo e hora”, aponta.
Folha Santista: Um estudo recente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) apontou o crescimento do número de casos de depressão em quase 50% e de ansiedade em 80%, desde o início da quarentena no Brasil. Em sua avaliação, como explicar esse fenômeno? Estaria relacionado ao medo exagerado da contaminação pelo coronavírus?
Luiz Antonio Guimarães Cancello: As pesquisas que apontam uma variação do número de casos de uma doença não são causais, ou seja, seu resultado final é numérico, é um retrato, não aponta as causas do fenômeno. Qualquer ilação minha seria um chute, digamos. Para não deixar você sem resposta, vou arriscar algumas causas possíveis. O medo de contaminação pode ser uma delas, mas o fato de que as pessoas ficaram em casa durante três meses ou mais pode induzir quadros psicológicos desfavoráveis. A impossibilidade de ir ao bar da esquina ou ao shopping, ficar longe dos filhos ou mesmo sem o futebol das quartas-feiras, tudo pode contribuir. Provavelmente, o aumento dos quadros mencionados tem causas diversas e combinadas.
Folha Santista: Como lidar com esse medo, existe uma receita ideal, do tipo manter a rotina ou não ficar o tempo todo diante de notícias sobre a doença, ou cada caso é único e deve ser analisado individualmente?
Cancello: Não existe receita ideal. Lê-se, na imprensa, os mesmos “conselhos”, em geral, dirigidos a uma classe social média ou alta, que pode segui-los: exercícios físicos, aprender algo novo, manter uma rotina e a higiene etc. Essas orientações são válidas para qualquer tempo e hora, embora seja mais difícil segui-las em época de pandemia. Mas há uma questão que não se costuma apontar. As pessoas têm diferentes temperamentos e histórias de vida. Para ficar apenas no primeiro tópico, o temperamento é extensamente estudado, hoje. (Se alguém quiser mais informações, é só digitar ‘Big Five’ no Google.) Diferentes temperamentos reagem de formas variadas. Ficar em casa pode ser ótimo para quem tem baixa ansiedade e péssimo para quem é ansioso,para dar um exemplo simplificado. Os temperamentos antissociais ficarão tranquilos, as pessoas que valorizam as reuniões constantes com amigos talvez se desesperem. Cada um deles terá de lidar de formas diferentes. O indivíduo sociável tem hoje as ferramentas da internet para reunir-se com seus pares. Possivelmente o ansioso se beneficie evitando se expor demais ao noticiário e encontrando uma leitura ficcional. São apenas hipóteses para ilustrar o que está na sua pergunta – há poucas regras gerais, cada um precisa encontrar seu caminho.
Folha Santista: Durante este período, ouviu-se muito que as pessoas não suportam travar um contato mais profundo com elas mesmas e, por isso, desencadeiam processos de ansiedade ou depressão? Qual sua avaliação?
Cancello: A meu ver, não procede. Em primeiro lugar, é difícil definir o que é “travar um contato profundo” consigo mesmo. A expressão será entendida de maneira diferente por um budista, um psicoterapeuta junguiano, um pai de santo, um psicoterapeuta existencial ou um astrólogo. Ansiedade e depressão são multifatoriais, têm aspectos constitucionais e reativos. Esta época de pandemia pode acentuar reações psicológicas indesejáveis, como já respondi anteriormente. O modo de contorná-las varia conforme a cultura e a personalidade do indivíduo. Foucault tem um conceito interessante, “Técnicas de Si”. Ele diz que “as técnicas de si […] permitem aos indivíduos efetuar, por conta própria ou com a ajuda de outros, certo número de operações sobre seu corpo e sua alma, pensamentos, conduta, ou qualquer forma de ser. Obtendo assim uma transformação de si mesmos com o fim de alcançar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade”. Os humanos de todas as épocas e latitudes buscaram e buscam essas técnicas na religião, na meditação, nas artes marciais tradicionais, na ioga, (práticas que não se excluem mutuamente), nas drogas, na psicoterapia (bem, os psicoterapeutas não visam a imortalidade, até onde sei, mas vale o contexto).
Folha Santista: A mesma pesquisa da Uerj indicou que as mulheres são mais propensas a sofrer com estresse e ansiedade durante o isolamento social. Essa propensão se dá apenas durante a quarentena ou é uma característica feminina? Por que ocorre mais em mulheres?
Cancello: Essa é uma longa discussão. Há problemas de avaliação em termos dos instrumentos diagnósticos, pois em geral são questionários, e estima-se que as mulheres são mais sinceras que os homens, ao expor sentimentos. Isso se deve a questões culturais bem conhecidas. É muito difícil achar uma amostra de homens e mulheres que tenha iguais condições de emancipação e tarefas, para se aferir com alguma precisão essa diferença. Há quem diga que o sistema hormonal feminino promove maior predisposição à depressão, mas não é um consenso.
Folha Santista: Há muita confusão sobre isso, então, é bom esclarecer quais são as diferenças e semelhanças entre ansiedade e depressão?
Cancello: Para não repetir o que poderia ser facilmente achado no Google, vou falar brevemente sobre ansiedade e depressão em relação a tempo e espaço, corpo e a si mesmo, seguindo uma tradição da fenomenologia. O tempo do ansioso escapa, é rápido, ele quer correr atrás do tempo, desespera-se por não conseguir; o tempo do depressivo é viscoso, passa lentamente, a espera traz agonia. O ansioso quer que tudo seja perto, “vou ali e já volto” é uma de suas frases constantes; para o depressivo tudo parece muito longe, difícil de chegar. Os dois corpos tremem; um como bambu ao vento, nervoso, outro como geleia, mesmo sem ser obeso. A autoimagem do ansioso costuma ser melhor que a do depressivo. Entre os dois há toda gama de variações e combinações possíveis. Os diagnósticos em saúde mental não são muito precisos, dependem da verbalização de quem está sendo examinado e, até certo ponto, da observação (ou abordagem teórica) do profissional de Saúde. Há pesquisas indicando que um mesmo quadro recebe diagnósticos diferentes de dois ou mais profissionais, principalmente quando os sintomas não são muito definidos. É a única área da Saúde em que não há exames de laboratório ou de imagem para caracterizar o diagnóstico, daí a dificuldade. Todas as afirmações baseadas em levantamentos sobre transtornos mentais, como a tão divulgada “a depressão será a doença mais incapacitante no mundo a partir de 2030”, devem ser vistas com cautela.
Folha Santista: – Como identificar se estamos sofrendo de um desses problemas, ou seja, se precisamos de auxílio profissional, ou se estamos sentindo apenas uma tristeza profunda diante do cenário atual?
Canecello: Se alguém está desconfiando que precisa de ajuda profissional, o mais indicado é procurar um psicólogo ou um psiquiatra de confiança. Ele será a pessoa indicada para encaminhar o processo ou discriminar entre uma crise passageira e um estado patológico mais duradouro.