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Passarela da Alfândega: quando o ultraliberalismo ataca mobilidade urbana – Por José Marques Carriço

Os problemas poderiam ser evitados se a Prefeitura de Santos tivesse levado em conta propostas de arquitetos de seu próprio quadro

Foto: José Marques Carriço

Por José Marques Carriço*

Uma incrível matéria publicada na edição de 16 de janeiro último, no Diário Oficial de Santos, com ufanismo acrítico saúda que “o acesso de pedestres à travessia de barcas Santos-Guarujá, no Centro Histórico, está mais seguro”. O equipamento, inaugurado na mesma data, foi construído sobre a Rua Antônio Prado (avenida portuária) e deveria resolver em definitivo os graves problemas de acesso ao terminal da Dersa, localizado em frente à Alfândega de Santos. Segundo a reportagem, a passarela supostamente beneficiaria “cerca de 20 mil pessoas que circulam diariamente pelo local” e “faz parte de uma série de modernizações em andamento no Porto de Santos que elevam a segurança da comunidade junto ao aumento da eficiência operacional das ferrovias que atendem ao porto”. O texto prossegue informando que a intervenção “vai de (sic) encontro às obras de revitalização do Centro Histórico, comandadas pela Prefeitura” e foi viabilizada “por meio de uma parceria”, sempre elas, “entre Prefeitura Municipal, Santos Port Authority (SPA) e a companhia ferroviária e de logística Rumo, que realizou a doação da obra, com investimentos estimados em cerca de R$ 20 milhões”. A gestão e manutenção, de acordo com a notícia, ficarão a cargo da SPA, a autoridade portuária.

O pano de fundo para a construção da passarela teria sido a cobrança às autoridades do Porto e do Município, por parte do Ministério Público e agências reguladoras de transportes terrestres e aquaviários, ANTT e ANTAQ, quanto à segurança dos usuários do sistema de barcas, que conecta o Centro de Santos a Vicente de Carvalho, em Guarujá. Em sua maior parte, esses usuários preferiam atravessar a avenida em nível, do que utilizar a antiga passarela, construída nos anos 80. Esta era um típico trambolho de concreto, da época da ditadura, quando não se costumava realizar consulta à população sobre obras públicas, não havia qualquer respeito à acessibilidade de trabalhadores, nem ao patrimônio histórico. A antiga passarela foi construída praticamente grudada ao notável edifício art déco da Alfândega de Santos, protegido por resolução do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos – Condepasa. Tão grudada, que acabou se transformando em um sanitário público informal e ponto de insegurança, sobretudo à noite.

Mas na verdade, o interesse da Rumo na construção da nova passarela se deve à construção de mais uma via férrea, paralela às existentes, ao longo da Rua Antônio Prado. Essencial para o aumento da produtividade do sistema ferroviário do Porto e aumento do faturamento da empresa, esta via foi implantada recentemente e resultou no cercamento de todo o acesso em nível ao terminal de barcas.

Portanto, a nova passarela surgiu, também, como solução necessária para eliminar o conflito provocado pelo novo investimento da empresa. Com 54 m de comprimento por 7,1 m de largura, sem altura divulgada e sem cobertura, o equipamento só pode ser acessado se o usuário do sistema de barcas vencer os quatro lances de escada, em cada extremidade. Para atender a pessoas com deficiência de locomoção, há apenas um elevador em cada lado, com capacidade para 16 pessoas, que deveria funcionar 24h por dia. Mas, desde a inauguração, os elevadores apresentam constantes defeitos, sendo os líderes dentre as muitas reclamações dos usuários, que se acumulam.

Dentre os muitos problemas do novo equipamento, destaca-se, a solução absurda encontrada pela Rumo, para sua utilização por ciclistas. A bicicleta é um dos meios de transporte mais importantes para os moradores de Vicente de Carvalho, que se deslocam diariamente a Santos. Segundo o Censo de 2010, mais de 24 mil guarujaenses se deslocavam diariamente por motivo de trabalho ou estudo, sendo a maior parte para Santos, sendo parte significativa de ciclistas. Portanto, qualquer solução de transposição da avenida portuária deveria considerar esta questão como prioritária. Mas, infelizmente, não foi o que aconteceu. A passarela foi dotada de trilhos metálicos, instalados em rampa, sobre os lances de escada, na esperança de que os ciclistas encaixassem as rodas das bicicletas e subissem e descessem as escadarias com mais conforto. Porém, o trilho é muito próximo aos corrimãos e frequentemente os guidões das bicicletas com eles se chocam, fazendo com que grande parte dos usuários opte por carregar as bicicletas escada acima ou escada abaixo. É realmente um martírio subir escadaria tão íngreme carregando uma bicicleta. E é claro que ciclistas mais frágeis ou deixarão de utilizar bicicletas, tendo os custos de transporte aumentados, ou simplesmente vão deixar de realizar a travessia de barca, afetando relações de trabalho e estudo.

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Os problemas de acessibilidade não param por aí, pois os degraus da passarela são vazados, não respeitando a norma técnica de acessibilidade (NBR 9050), que veda esse tipo de solução, que pode provocar acidentes, se o pé do usuário ficar preso no vão. Aliás, mulheres vêm reclamando com razão, que esses vãos permitem que qualquer pessoa sob a escada espie por baixo das saias das usuárias.

A relação do novo equipamento com o edifício tombado da Alfândega, também não é boa. O conflito verificado pela implantação da passarela antiga, que criava obstáculo à visualização do bem protegido, devido à pequena distância entre as edificações, apenas mudou de lado, posto que a distância entre a nova passarela e o edifício histórico é pequena, embora maior. Mas qualquer observador minimamente atento, que circule pela Rua Antônio Prado, terá a visão do edifício da Alfândega encoberta. Aliás, em 2018, a Prefeitura de Santos alterou a lei municipal que regula a construção de passarelas aéreas, justamente para retirar a restrição à construção de novos equipamentos do tipo, em vias do Centro, nas proximidades de edifícios protegidos.

Todos esses problemas poderiam ser evitados se a Prefeitura de Santos tivesse levado em conta propostas de arquitetos de seu próprio quadro, entregues, em 2016, à apreciação dos gestores municipais. Preocupados com a primeira proposta de passarela, apresentada pela Rumo, que era ainda pior que a atual, os técnicos apresentaram alternativas que, se implantadas, poderiam ter evitado os graves inconvenientes da nova passarela. Dentre as propostas, destacam-se alternativa dotada de escadas rolantes e um estudo para passagem sob a via, que suavizaria as rampas e tornaria a transposição do trecho muito mais confortável, abrigada do sol e da chuva, bastando que medidas mínimas de segurança fossem adotadas.

Mas, lamentavelmente, as administrações do Município e do Porto preferiram atender aos interesses da empresa ferroviária, que apresentou um projeto de menor custo, porém extremamente desrespeitoso aos usuários do sistema de barcas. Neste sentido, é constrangedor o silêncio da Dersa, empresa que administra a travessia e que deveria zelar pelo conforto de seus passageiros. Igualmente difícil de explicar é a ausência de discussão do projeto no âmbito do Conselho de Desenvolvimento da Baixada Santista (Condesb), uma vez que a obra envolve o transporte metropolitano de passageiros, que é uma das competências regionais, definidas pela Lei Complementar nº 815/1996, que criou a Região Metropolitana da Baixada Santista.

Mas desse mato não se deve esperar que saia algum coelho, pois tanto a Dersa como o Condesb, politicamente agora estão sob o controle do novo governador, Tarcísio de Freitas, que era o ministro da Infraestrutura, responsável pelo comando da SPA, autoridade portuária de Santos, quando a passarela projetada pela Rumo foi aprovada.

Aliás, o governador é um ferrenho defensor da privatização da SPA, aventura que felizmente não conta com simpatia do novo governo federal, posto que não possui exemplos de aplicação, além de alguns casos polêmicos de portos australianos. Importante pontuar que a desestatização não serviria para resolver os principais gargalos de nosso complexo portuário, que estão nos acessos rodoferroviários. Deve-se lembrar que o próprio Tarcísio, quando ministro, antecipou a renovação da concessão da malha ferroviária que atende ao Porto e o gargalo ferroviário ficou fora do escopo da desestatização. E agora, como governador, Tarcísio é o responsável pela Via Anchieta, cuja pista descendente, inaugurada em 1953, segue sendo a única e obsoleta alternativa para que carretas acessem o Porto de Santos. O que o mandatário paulista fará quanto a isso?

Que este episódio da nova passarela da Rumo sirva de lição para quem embarca na canoa furada da privatização a qualquer custo. Principalmente, porque o que o Porto de Santos arrecada anualmente, se aplicado em sua área de influência direta, seria suficiente para a construção de várias passarelas dotadas das melhores práticas de acessibilidade e conforto aos usuários. De fato, quando os interesses privados desequilibram a seu favor as relações com o interesse público, pela ação ou omissão dos gestores públicos, sobretudo em políticas estratégicas como a de mobilidade urbana, até as pedras pisadas do cais sabem que será a população a maior prejudicada.

*José Marques Carriço é arquiteto e urbanista.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.

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