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Transição ecológica: Para onde? – Por Núcleo da Baixada Santista do Observatório das Metrópoles

Emerge a necessidade de uma repactuação entre os diversos setores e atores que compõem a complexa rede que é a sociedade

Foto: https://crbio07.gov.br

Por Paulo José Ferraz de Arruda Júnior, Jeffer Castelo Branco, Rafaela Rodrigues da Silva e Silvia Maria Tagé Thomaz*

Cada vez mais evidente são os efeitos ecológicos e ambientais negativos decorrentes da superexploração dos recursos naturais, a partir da revolução industrial. Essa conclusão muito bem documentada na publicação “Limites do Crescimento”[i] aduz ainda que, se a humanidade continuasse seguindo o padrão de produção e consumo verificado na época, os recursos naturais se esgotariam em menos de 100 anos. Esses foram os fatores que levaram à realização da 1ª Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano, que reuniu 113 países na cidade de Estocolmo em 1972, momento em que o Brasil estava mergulhado em uma ditadura militar e com forte perspectiva desenvolvimentista.

Sob o signo da ditadura, e ainda sem um claro entendimento entre impactos ambientais e desenvolvimento econômico, a comitiva brasileira na Conferência de Estocolmo em 1972 ostentava uma faixa com os dizeres: “Bem-vindos à poluição, estamos abertos a ela. O Brasil é um país que não tem restrições, temos várias cidades que receberiam de braços abertos a sua poluição, porque nós queremos empregos, dólares para o nosso desenvolvimento”. Muitas décadas se passaram, no entanto, esse modelo insustentável ainda permeia o pensamento e direciona as ações de parte de setores e autoridades brasileiras.

Vinte anos depois, momento em que no país já se sentia o frescor dos ventos democráticos devido à queda do regime ditatorial e, enquanto se digladiava contra a inflação de preços, 176 autoridades governamentais (países) e 1.400 entidades da sociedade civil (ONGs), compondo mais de 30 mil pessoas, se reuniram na cidade do Rio de Janeiro, em 1992, para a realização da 2ª Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente. Conhecida também por ECO 92, foi uma das Conferências mais emblemáticas já realizadas e que apresentou ao mundo um quadro preocupante sobre a questão ambiental e o aquecimento global, o que levou os países a assinarem vários acordos, entre eles a Agenda 21 e a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas.

Em 2024, mais de 30 anos se passaram desde a Rio-92 e 50 anos desde Estocolmo-72, em que o alerta foi dado à humanidade, pois esses eventos já expressavam a necessária e urgente transição ecológica, estando essa necessidade expressa na publicação “A Transição Ecológica”[ii], que abordou acerca das preocupações sobre a interação negativa do homem com o ambiente físico. Assim como, na publicação “Nosso Futuro Comum”[iii], em que se revelou que os problemas ambientais do planeta haviam ultrapassado a capacidade natural de recomposição e a científica de apresentar soluções, além dos dados do aquecimento global e as falhas na camada de ozônio e; na publicação “Manual de Transição: da dependência do petróleo à resiliência local”[iv], que traz orientações para pôr uma cidade em movimento de transição.

Portanto, podemos considerar que o assunto da transição ecológica não é algo novo, mas volta com força ante os resultados climáticos violentos, cada vez mais intensos, que todos inequivocamente temos observado, vivenciado e sentido cotidianamente. A “transição ecológica” encontra rebatimento em diferentes esferas – além da questão das emissões de gases de efeito estufa devido à queima de combustível fóssil, que causa a aceleração do aquecimento global – tais como: economia competitiva e predatória, desflorestamentos para a produção de celulose e geração de pastos, superprodução de resíduos urbanos e industriais perigosos, agricultura industrial baseada em agrotóxicos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente e uma visão de saúde centrada na doença e fármacos químicos perigosos.

E em contraposição a esses desafios, temos, entre outras propostas: energias limpas e renováveis, economia justa e solidária, reciclagem, compostagem e biofertilizantes, uma produção orgânica de incentivo familiar e uma saúde centrada na pessoa e com o rigoroso controle e eliminação de condicionantes deletérias de determinantes e determinações sociais de saúde, além da priorização do Princípio da Precaução.

Portanto, considerando meio século desde Estocolmo-72, já deveríamos estar em um estágio muito mais avançado e já ter ultrapassado esse período, do que desejosos por um processo de transição. Porém, como já expresso na frase atribuída a Albert Einstein: “Não podemos resolver nossos problemas com o mesmo pensamento que usamos quando os criamos”. De lá para cá, estamos apenas trabalhando na inclusão de poucos desvalidos, em uma sociedade talhada, estruturalmente ordenada, para uma produção e consumo insustentáveis à manutenção da vida na sociedade contemporânea.

No livro “A Lei da Entropia e o Processo Econômico”[v] se demonstrou que o processo econômico não é um sistema perpétuo, que alimenta a si mesmo de forma circular, sem perdas. O sistema econômico – hoje dominante, linear e predatório, como se os recursos naturais não fossem finitos – é alimentado pelos recursos naturais, que após sua utilização são transformados em rejeitos que não são gerenciados para serem reutilizados. Pois bem, muito embora essa teoria tenha sua lógica, nunca fora verdadeiramente levada em consideração, afinal sempre se imaginou que os recursos naturais eram todos infinitos e, aqueles que não fossem, existiriam em abundância na natureza.

Essa afirmação acabou sendo superada por si só com o passar dos anos, pois hoje constatamos que os recursos naturais estão escassos — os chamados serviços ecossistêmicos estão cada vez mais comprometidos por superexploração, devastação, desertificação, poluição e contaminação de territórios — aliás, situação ideal para acumular ainda mais capital. Dessa maneira, o desenvolvimento humano sustentável é fundamental e urgente. Afinal, não há nenhuma atividade econômica no mundo que não precise de recursos naturais, e que uma vez desaparecendo, desaparece junto toda a atividade econômica como a conhecemos.

A bola da vez é um Desenvolvimento Humano Sustentável, ou seja, uma gestão equilibrada fundada no tripé da integração de práticas econômicas (solidárias), sociais (universalizadas) e ambientais (ecologicamente equilibrada). Logo, é preciso entrar no domínio do pensar complexo, solidário para com o destino planetário, ajustando o convívio do homem com a natureza, visto que nela estão contidos os elementos e os meios que garantem a vida em sociedade e suprem materialmente as bases de criação e manutenção do corpo vegetal, animal e humano, em síntese, a adequada sobrevivência da presente e futuras gerações.

Em tese, o plano de transição ecológica no Brasil e no mundo tem por objetivo o combate à crise do clima com justiça social, sustentabilidade, geração de empregos e aumento da produtividade, além de tornar a economia mundial e brasileira mais “sustentáveis” e espelhadas expressamente nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, sucessor dos Objetivos do Milênio e da Agenda 21, que precisam ser recordados. No entanto, no bojo dessas discussões e ações, é preciso exaustivamente lembrar que economia sustentável pode ser a insustentabilidade do desenvolvimento em médio e longo prazo, e que nem toda proposta considerada sustentável, de fato é, podendo inclusive servir como “maquiagem verde” (greenwashing), ou mesmo um “canto da sereia”, dependendo, no caso, de diversos fatores condicionantes dos projetos intitulados por sustentáveis.

Com poucas críticas midiáticas, pois precisamos agir, a transição tem atenção centrada na matriz energética, que apesar de sua importância em função das mudanças climáticas, na verdade é tímida, uma vez que essa mesma energia independentemente da fonte, da maneira que é e será usada, ou seja, para manter os atos que geraram escassez de recursos naturais, é destruidora de mundos. E ao não impedir que processos necrocorporativos e necroeconômicos, deletérios ao meio ambiente e à saúde pública e coletiva, sejam instalados, como por exemplo: produzir energia queimando insanamente milhares de toneladas de lixo reciclável e combustível fóssil, de fato podemos concluir que estamos bem longe da aproximação do discurso com a prática.

Nesse diapasão, e não abordado com firmeza nos referidos planos de transição ecológica, está o incentivo e a expansão de processos que fazem uso intensivo de combustível fóssil em várias partes do mundo e regiões do Brasil. Estamos sendo ameaçados pelo fantasma das termelétricas e incineradores, esse último disfarçado de unidades de recuperação de energia (UREs), ambos operados através da queima de quantidades exorbitantes de combustíveis fósseis e que se constitui, na prática, ofensa à Constituição Federal e à Política Nacional de Resíduos Sólidos.

A exemplo, está sendo planejado numa linha de 75 quilômetros entre duas grandes regiões metropolitanas, 3 incineradores (Santos, Mauá, Barueri – no estado de São Paulo), que, juntos, terão a capacidade total próxima de queimar 6 mil toneladas de resíduos por dia e, com isso, lançarão na atmosfera, diariamente, cerca de 4 mil toneladas de gases tóxicos e de efeito estufa, 1.500 toneladas de resíduos sólidos perigosos, mais alguns milhares de toneladas de água contaminada.

Esquece-se com facilidade da frase bicentenária de Lavoisier, que “no mundo nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, ou seja, tudo que entra para ser incinerado sai em uma outra forma, ainda mais perigosa. Importante salientar que essa política retrógada, na perspectiva do desenvolvimento humano sustentável, contou com total apoio de governos anteriores, nos níveis estadual e federal, e das empresas, incluindo as internacionais, que operam e lucram com esse processo poluidor e sugador de recursos públicos e que vêm fazendo efetivo lobby junto aos governos locais.

Ainda sob o signo da transição ecológica e energética, para alimentar esse aumento e uso intensivo de combustível fóssil em incineradores e termelétricas, foi implantado um píer, servindo de terminal de descarga dos navios transportadores de gás natural liquefeito (navios metaneiros), dentro da cidade de Santos, próximo à região urbana densamente povoada, sendo que um único tanque padrão de GNL (125 mil metros cúbicos) é equivalente a sete décimos de uma megatonelada de TNT, o mesmo que cerca de 55 bombas de Hiroshima, como apontam estudiosos no assunto (LOVINS & LOVINS, 2001).

Os navios transportadores de gás metano (dito gás natural) mais modernos carregam até o dobro dessa quantidade e em conjunto com o navio regaseificador somam um potencial energético de até 190 bombas de Hiroshima. O processo movido contra essa ameaça, realizado pelo Ministério Público com apoio da sociedade civil organizada, encontra-se agora em recurso no Tribunal da Capital de São Paulo, Brasil, na 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente, cuja decisão sobre a insegurança ambiental, social e econômica gerada por esse projeto está nas mãos do desembargador Dr. Luís Fernando Nishi.

Não obstante a boa intenção, os planos de apoio e de Transição Ecológica, embora representem um passo aparentemente positivo, são excessivamente tímidos, e podem até mesmo ser inócuos para reverter ou atenuar a grave questão climática e ambiental, quando ainda não tratou da herança do governo anterior, que no estouro da boiada empurrou goela abaixo da sociedade santista a implantação desse terminal de descarga de gás que, em caso de acidente catastrófico, pode vir a pôr bens público e privados no chão e ceifar centenas, quiçá milhares de vidas, e sacudir a economia nacional, pois pelo Porto de Santos passa 1/3 do PIB nacional.

Em resumo, esses navios trarão combustíveis fósseis, responsáveis pelas mudanças climáticas, para serem queimados em termelétricas e incineradores disfarçados de URE, que poderão inviabilizar a sadia qualidade de vida da população santista e região, ao liberarem substâncias conhecidas como moléculas da morte, além de aumentar a poluição na região com outros gases tóxicos e de efeito estufa. Não resta dúvida que, apesar de teoricamente ter boas intenções, na prática, os planos trazem omissões e da maneira como são criados não serão suficientes para que os objetivos ambientais e climáticos tenham êxito.

Ainda que os efeitos do aquecimento global, responsáveis pelas mudanças climáticas, venham batendo em cada uma das portas em volta do planeta, com a subida do nível do mar e efeitos climáticos cada vez mais violentos, como os últimos ocorridos no Rio Grande Sul, as grandes petroleiras evitam a discussão e seguem na contramão da solução e a demanda por suas mercadorias, óleo e gás, não para de crescer.

Por exemplo, as propostas apresentadas nas recentes assembleias de acionistas para forçar a Shell e outras petroleiras a alinharem seus planos de descarbonização ao Acordo de Paris foram sumariamente rejeitadas (UOL, 2023). Já a gigante do petróleo do Texas, a Exxon Mobil, tentou no Tribunal Distrital dos EUA, em Fort Worth, buscar excluir de sua reunião anual de acionistas uma proposta para acelerar os cortes de emissões de gases de efeito estufa (VALOR, 2024).

Recentemente, a Shell abandonou a sua meta de redução de emissões de gases de efeito estufa para 2035, alegando incerteza sobre “a forma da transição energética e o ritmo da evolução em diferentes países”. E a British Petroleum fez ecoar a abordagem da Shell, declarando que a multinacional é “muito, muito movida por retornos financeiros” (FOLHA, 2024).

A descoberta e a perspectiva de aumentar a exploração de petróleo na margem equatorial coloca mais uma pá de cal na tentativa da humanidade de arrefecer o acelerado aquecimento global. O país se vê em um dilema, explora o petróleo e faz parte do seleto e bilionário clube de aceleradores do aquecimento global, ou se junta àqueles que têm consciência para, por meio da necessária diplomacia e estratégia, tratar da proteção do planeta e das espécies que dele dependem.

Assim, na primeira hipótese, corremos sério risco de ter uma resposta engendrada pelo mesmo pensamento que gerou tais problemas ambientais. Não podemos continuar maculando e extraindo recursos do planeta em uma quantidade e velocidade em que ele não está mais tendo tempo suficiente para repor. A tendência é deixar de oferecer seus recursos naturais, pois o padrão de vida contemporâneo é sufocante e insustentável para a natureza, inclusive a humana.

Nossos esforços devem ultrapassar as demandas emergentes e as respostas ao saldo negativo, resultantes da falta de conhecimento e de descaso. Para se fazer uma efetiva transição ecológica é preciso também enfrentar o desafio coletivo de apontar para soluções mais permanentes, centrada nas diversas formas de vida, com mudanças de paradigmas, transformadoras desde a raiz, construindo processos de boa governança, democráticos de fato e amplamente participativos, com a inclusão da sociedade como um todo.

A partir da encruzilhada em que nos encontramos emerge a necessidade de uma repactuação entre os diversos setores e atores que compõem a complexa rede que é a sociedade. Nesta conjuntura, para onde vamos ainda é um preocupante enigma.

I 1972, Dennis Meadows, Jorgen Randers, Donella H. Meadows, William W. Behrens III – Clube de Roma

II 1976, John W. Bennett

III 1987, Relatório Brundtland, coordenado pela então primeira-ministra da Noruega, a Sra. Gro Harlem

IV 1980, Rob Hopkins

V 1971, Georgescu-Roegen

*Por Dr. Paulo José Ferraz de Arruda Júnior, Dr. Jeffer Castelo Branco, Dra. Rafaela Rodrigues da Silva e Dra. Silvia Maria Tagé Thomaz. Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Saúde Socioambiental da Universidade Federal de São Paulo (NEPSSA-Unifesp).

Todos são pesquisadores do Núcleo da Baixada Santista do Observatório das Metrópoles, que desenvolve o projeto Observatório das Metrópoles nas Eleições: um outro futuro é possível.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.

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