Foto: Divulgação/Prefeitura de Itanhaém

Por Newton José Rodrigues da Silva, Marcia Farah Reis e Davis Gruber Sansolo*

A pandemia da Covid-19 vem provocando uma série de fenômenos sociais, econômicos e ambientais em escala global. No Brasil e em especial na Baixada Santista, as dificuldades causadas pelo perigo da doença e do afastamento social são de diversas naturezas e grandezas.

Parcelas da sociedade que têm condições adequadas de habitação e renda estável, portanto, que têm condições de ficar em casa, mas sem o convívio social anterior à pandemia, têm noticiado o agravamento de suas condições emocionais, além de outras dificuldades, como a necessidade de mães e pais de apoiarem seus filhos que estejam em regime de educação à distância, e de poderem consumir produtos alimentícios de qualidade, limpos e acessíveis.

Por outro lado, à maior parte da população, ou seja, os pobres, trabalhadores de baixa renda que habitam bairros periféricos em residências muitas vezes informais, de tamanho pequeno e com grande densidade populacional, além dos problemas das classes médias e altas, soma-se a impossibilidade de isolamento sem uma renda mínima. Renda para poderem se proteger com acesso à água limpa e produtos de higiene pessoal e renda, sobretudo, para poderem se alimentar.

A pandemia tem estimulado a consciência humana. A consciência de que estamos carentes de humanidade, de ações que estimulem a proximidade entre os humanos, simplesmente por sermos humanos. Como Martin Buber já havia apontado, a necessidade que temos de nos definir como humanos pelas nossas relações humanas.

Diante desse cenário, além dos problemas já conhecidos, os tempos atuais têm proporcionado uma série de aprendizados. A situação tem mobilizado diversos setores da sociedade para o enfrentamento dos problemas coletivos.

A necessidade da proximidade, ainda que fisicamente distante, tem sido um desafio, cujo enfrentamento tem ocorrido, por ações solidárias. Solidárias como as filantrópicas, promovidas por instituições religiosas e até mesmo por empresas privadas, mobilizando recursos e doações, para nesse momento de pandemia aliviar o sofrimento dos mais pobres.

Há um outro tipo de ação que estamos chamando de iniciativas econômicas solidárias. Envolvem a mobilização coordenada, entre grupos de diferentes setores e naturezas, formando-se pequenas redes sociotécnicas, orientadas para soluções de problemas coletivos. O poder público, na medida que encontra vínculos com esses grupos, fortalece as redes solidárias formando-se um ciclo de reciprocidade. Alguns são empreendimentos já consolidados, como cooperativas e associações, outros estão em processo de compreensão e articulação a essas redes.

As ações de cunho filantrópico são motivadas por questões de natureza moral e muitas vezes míticas, religiosas. Distinguem-se de ações de reciprocidade,

A economia solidária é conceituada tradicionalmente como um “conjunto de atividades econômicas – de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito – organizadas sob a forma de autogestão”.

Compreende uma variedade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, entre outras, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, trocas, comércio justo e consumo solidário. Trata-se de uma forma de organização da produção, consumo e distribuição de riqueza centrada na valorização do ser humano e não do capital, caracterizada pela igualdade. Os grupos autogestionários de artistas que dão vida à cultura dos territórios onde atuam para superar a estandartização cultural também integram a economia solidária.

Na Baixada Santista a economia solidária é diversificada, sendo praticada por grupos urbanos e rurais. Pode-se citar como exemplo os consumidores conscientes do Livres, que integram uma rede com organizações de produtores de orgânicos e ecobikers cooperados que fazem as entregas sem a exploração dos donos de aplicativos.

Há agricultores e pescadores que comercializam a produção diretamente para os consumidores por meio de “Feiras do Produtor”, entrega em domicílio e barraca coletiva com drive-thru, assim como para programas de compra oficiais: Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar.

Também existem grupos de produção de artesanato, cooperativas de catadores de materiais recicláveis de primeiro e segundo graus, prestadoras de serviços de lavanderia, coletivos de comercialização de cestas de café da manhã e coffe break, comunidades tradicionais de caiçaras e indígenas engajados em roteiros de turismo de base comunitária, cooperativa de professores especializada em formação de outros professores, mulheres organizadas que produzem pão, grupos de produtores de orgânicos denominados de Organização de Controle Social e coletivo em que produtor e consumidores atuam em parceria, tipo de organização denominada Comunidade que Sustenta a Agricultura. Parte dessas experiências está na informalidade, ou seja, não está relacionada às atividades de uma associação ou cooperativa.

Dessa forma, a organização de grupos que atuam sob os preceitos da economia solidária tem sido a forma de inclusão socioeconômica, promoção de desenvolvimento local e geração de trabalho e renda e não de emprego e salário, forma que desidrata frente à retirada de direitos dos trabalhadores e aumento da informalidade.

Observa-se, no entanto, nesse período de afastamento social, que proprietários de empreendimentos familiares se associaram informalmente e, em parceria com consumidores considerados conscientes, ou seja, que valorizam produtos e serviços locais, reagem em solidariedade mútua, ou seja, em reciprocidade.

Denominamos essas experiências como iniciativas econômicas solidárias, que podem ser definidas como a interação de diversos empreendimentos de gestão familiar ou coletiva, como associações e cooperativas, que integram uma rede sociotécnica fundamentada na solidariedade, na cooperação, na mutualidade, na reciprocidade.

Essas redes são organizações heterogêneas, com cada um tendo o seu objetivo. No entanto, há um quadro de interesse comum e, por isso, agem de forma coletiva, alinhada, de acordo com os princípios e valores da economia solidária.

O alcance do objetivo de um dos seus integrantes possibilita que os demais também alcancem os seus objetivos. Esse é o sentido do trabalho em rede e de forma solidária. Recomenda-se para esses coletivos que representam iniciativas econômicas solidárias a elaboração de um plano de trabalho e um regimento interno, para que consolidem a organização com regras e objetivos.

Além disso, há necessidade de se ter formação continuada em temas técnicos específicos das atividades que desenvolvem e quanto à organização, segundo os princípios e valores da economia solidária.

Exige-se, também, transparência e vigilância nas ações, para que não haja desvios e as relações não se limitem ao toma lá, dá cá dinheiro-produto ou serviço prevaleçam. As configurações das redes definidas como iniciativas econômicas solidárias não podem se limitar aos aspectos mercantis, que estarão sempre presentes, mas devem incorporar atividades cívicas, como reuniões para elaboração de atividades de forma conjunta, mutirões, trocas de saberes locais passados por várias gerações e que contribuem para a constituição dos territórios.

As iniciativas econômicas solidárias não devem ser limitadas à participação dos produtores ou prestadores de serviços em reciprocidade entre si e com consumidores. Devem, ainda, ter a participação de pesquisadores, extensionistas, voluntários, estagiários das universidades e todos que possam colaborar para que haja inovações técnicas e organizacionais que possibilitarão maior dinâmica e durabilidade à rede.

Contata-se que a economia solidária fundamentada, nessas iniciativas, pode ser considerada como a totalidade de atividades que contribuem para democratizar a economia pelos engajamentos cidadãos, na construção de coletivos que buscam soluções para os problemas comuns.

Exemplos de iniciativas econômicas solidárias,como reação ao afastamento social, podem ser citados como as denominadas Redes de Economia Solidária de Peruíbe, Mongaguá e Bertioga. Nestes casos, produtores e prestadores de serviços criaram uma relação do que oferecem e se organizam para fazer entregas em domicílio.

Esse fenômeno também se observa em São Vicente, com a emergência das Mulheres Empreendedoras da Economia Solidária, que com seus talentos e conhecimentos se organizaram no seio da Associação Flor do México para resolverem seus problemas, com a elaboração e entrega de pratos prontos.

Atualmente, atendem principalmente aposentados, pois estes ainda têm alguma renda no momento, comparado ao restante da população.

Existem outros exemplos, como as feiras de produtores de orgânicos de Santos e Itanhaém, que continuam a funcionar com cuidados para evitar a disseminação do coronavírus, a barraca drive-thru com produtos de oito agricultores familiares em Itanhaém e barraca similar em Peruíbe.

Em Barra do Una, Peruíbe, unidade de conservação classificada como Reserva de Desenvolvimento Sustentável, pescadores artesanais se organizaram para receber encomendas por telefone, o mesmo ocorrendo com os permissionários dos boxes do mercado de peixes do centro da cidade.

Agora, em grupo, organizam a realização da Festa Virtual da Tainha, com a elaboração de pratos tradicionais da época e entrega em domicílio. No mesmo município mulheres ligadas à União das Mulheres da Economia Solidária produzem pães, que são inseridos nas cestas básicas distribuídas para a população em situação de vulnerabilidade.

Além disso, artistas se organizam em shows virtuais, como o Torto MPBar, com contribuição financeira livre, também representam iniciativas econômicas solidárias. Neste caso, há a proximidade cultural entre os grupos musicais que se revezam e aqueles que assistem.

Existe o caso do site criado por um grupo de voluntários para viabilizar a comercialização de artesanato pelas famílias da aldeia indígena Paranapuã, de São Vicente. Neste caso, a reciprocidade entre grupos heterogêneos viabiliza a emergência da iniciativa.

Há, ainda, o aumento do número de consumidores conscientes do Livres de Santos, para cerca de 150 famílias, em busca de produtos orgânicos e compra de forma associada. Pode-se definir esses consumidores conscientes como consum’atores, por terem a capacidade de definir e serem responsáveis pelo seu modo de consumo, em parceria com as organizações dos agricultores familiares, artesãos, grupos de prestadores de serviços como os ecobikers.

Ana Capozzi, Susete Coutinho e Vanessa Gastaldo, da Rede de Economia Solidária de Peruíbe, definem o objetivo da iniciativa econômica solidária: “Buscamos pensar em novas relações, baseadas na economia solidária, não limitadas, apenas, à compra e venda de produtos. Valorizamos as trocas, vistas como um exercício necessário para criar relações mais justas. Pensamos que devemos buscar estabelecer relações de confiança entre quem produz e o consumidor final, onde quem consome conhece não apenas quem produz, mas como o faz. E nessas interações vamos trocando conhecimento e criando outras possibilidades”.

Obviamente que o afastamento social também impôs limitações que trouxeram grandes perdas às iniciativas econômicas solidárias que já existiam, principalmente àquelas relacionadas ao Turismo de Base Comunitária (TBC) nas aldeias indígenas e comunidades caiçaras, assim como aos grupos de artesania, de teatro, bandas musicais e aos catadores de materiais recicláveis.

Para atender às necessidades mais imediatas de alguns desses segmentos, o Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista participou de campanha de arrecadação de dinheiro, alimentos e materiais de higiene e limpeza, em parceria com entidades não governamentais e governamentais, assim como com empreendimentos econômicos solidários.

No entanto, as reações denominadas como iniciativas econômicas solidárias durante a pandemia são verdadeiras inovações sociais, em rede, que apontam para a construção de uma outra economia.

Há municípios em que há apoio das prefeituras às iniciativas e em outros não, o que é um equívoco, pois, a partir desse momento, a melhor forma de promover a inclusão socioeconômica é apoiar a economia solidária com estímulo às oportunidades criadas pela proximidade geográfica.

Porém, além desse tipo de proximidade precisa-se apoiar a proximidade organizacional e, sobretudo, a proximidade de propósitos, aquela que valoriza a equidade, o respeito ao ambiente e as diversidades étnicas, culturais, religiosas e de gênero. A economia solidária pode, inclusive, ser uma referência para economia da Baixada Santista, integrando a sua governança.

Entende-se que não há pós-Covid, ou seja, um dia determinado em que será o marco e que tudo voltará ao normal. A questão que fica é qual normal queremos? O professor da Unicamp, Renato Dagnino, afirma que “o novo normal que emergirá do capitalismo neoliberal financeirizado terá que incorporar uma palavra mencionada à exaustão: solidariedade”.

Para isso, afirma: a economia solidária deve ser considerada o eixo da reconstrução nacional, com políticas públicas para o seu desenvolvimento e constante fortalecimento. Isso inclui a participação dos grupos de iniciativa econômica solidária, universidades, prefeituras, governos estaduais e federal, órgãos de extensão rural, associações de bairro, grupos de empreendimentos familiares e informais etc.

Construir uma economia popular e solidária é a única forma de termos uma sociedade fraterna, que se relacione de forma harmoniosa com o meio ambiente e garanta um presente e um futuro mais felizes para brasileiros e brasileiras.

No entanto, diante do bombardeio, principalmente dos meios de comunicação que representam as ideias do sistema econômico hegemônico de que competir e consumir de forma desenfreada são virtudes, e cooperar, ser solidário, somente se faz por caridade, precisa-se valorizar as experiências em curso e aprofundar as atividades de formação para a prática de uma outra economia, um processo que podemos denominar de transição solidária, da mesma forma que existe a transição agroecológica.

Dessa forma, o Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista atua em toda a região, com a promoção de palestras, cursos e apoio técnico aos grupos, de forma gratuita, voluntária, por meio dos seus integrantes.

Atualmente, organiza um conjunto de lives que estão disponíveis no grupo de Facebook e do Youtube do Fórum. Em julho de 2020, disponibilizará para candidatos às câmaras municipais e prefeituras um conjunto de propostas para fortalecer a EcoSol por meio de políticas públicas. A intenção é que as incorporem nas suas plataformas de atuação e se comprometam com a execução caso sejam eleitos.

O capitalismo experiencia a pior crise da sua história e promoveu ao máximo a concentração de renda, o consumismo, o desequilíbrio ecológico, o massacre de povos tradicionais e a miséria de expressivos contingentes humanos. O coronavírus, que vitima principalmente os pobres, também é resultado desse sistema. As transformações necessárias para uma sociedade mais justa e igualitária e com respeito ao ambiente, passam, necessariamente, pela construção de uma outra economia.

Economia solidária ou barbárie, o que vamos escolher?

*Newton José Rodrigues da Silva, Marcia Farah Reis e Davis Gruber Sansolo são integrantes da Secretaria Executiva do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista.