Aos 39 anos, funcionária pública há 11 na prefeitura de Santos, sem enxergar de um olho e com visão reduzida do outro, Jenifer Pavani Ribeiro transformou sua vida ao aceitar o convite para integrar a Escola Radical de Surf Adaptado, a primeira do gênero gratuita no Brasil, idealizada e coordenada pelo surfista Cisco Araña.
Jeny, como é conhecida, faz aulas semanais e também trabalha no atendimento e recepção da escolinha, que atende somente pessoas com variados tipos de deficiência. Ela afirma que renasceu após começar a praticar o esporte.
“Conheci o Cisco e ele sempre me chamou para surfar, mas eu não acreditava que conseguiria. Em 2018, ele voltou a falar a respeito de uma escola que seria inaugurada e que gostaria que eu estivesse com eles. Em seguida, me convidou para trabalhar na escola de surf adaptado”, conta.
Jeny não esconde a alegria. “Quando subi pela primeira vez numa prancha, a sensação foi indescritível. Eu sei que a estabilidade proporcionada pelo funcionalismo público é algo excepcional, mas a dádiva, de fato, oferecida por esse funcionalismo na minha vida foi a oportunidade de estar numa escola realmente inclusiva, que realiza meu sonho de trabalhar e participar diariamente com pessoas tão iluminadas e especiais. É muito amor, dedicação, empatia, respeito. No meu coração só há gratidão, a Deus, à minha mãe, ao Cisco e à toda equipe da escola”, destaca.
Para Jeny, o surf é um prazer, um esporte que não requer força. “É leve, pleno, traz paz. O surf para mim é um sonho que tem se tornado realidade e me realizado. O surf tem trazido um novo sentido para minha vida, um estímulo para que eu acredite na superação dos meus grandes desafios e medos. Ele revigora minhas forças e tem me feito reviver. O surf é vida, é alma. O surf é muito amor”.
Em relação aos benefícios proporcionados pelo esporte no que se refere à sua deficiência visual, Jeny revela que são muitos: “Eu perdi muito do equilíbrio com a perda e a redução da acuidade visual. Estar em cima de uma prancha antes para mim era fora de cogitação. Mas hoje já encaro como possibilidade o que era inimaginável”, diz.
Ela conta que aguarda com ansiedade o dia da aula. “Tenho visto e vivenciado tantas lições lindas, que me tornam mais forte, corajosa, capaz. O surf é uma alavanca e um impulso para que eu encare o que venha, me traz uma plenitude racional e reflexiva sobre a vida. Eu evoluo com mais sabedoria e mais amor. É muita vontade de ir além do que eu supunha ser capaz de chegar”, acrescenta.
O momento de entrar na água, para Jeny, é muito especial; “Quando estou no mar, me sinto no meu lar. O som das ondas me traz paz e tranquilidade. Eu não tenho medo, tenho alegria, prazer, satisfação. Eu tenho vontade de trazer as pessoas que eu amo para sentirem a vibe positiva que o mar emana. É, de fato, indescritível, tem que sentir para poder saber exatamente o que é estar no mar”, conclui.
Superação
A história de Júlio César Deolindo da Silva, 33 anos, é de muita superação, com ajuda do esporte. Vítima de um acidente automobilístico, que provocou uma lesão na cervical, fratura de coluna em dois lugares, há dois anos ele recebeu o diagnóstico de tetraplegia (perda dos movimentos dos braços, tronco e pernas).
“Hoje, o surf representa para mim uma grande liberdade, porque eu tenho muitas limitações para fazer outro tipo de esporte. Quando entro no mar e consigo pegar uma onda, a sensação é incrível, mesmo deitado, de joelho ou em pé, com a ajuda de todo mundo. É maravilhoso, porque dois anos atrás eu achei que nunca mais fosse levantar e ficar em pé na minha vida. Hoje, estou surfando”, relata Júlio.
Ele conta que no surf, conseguiu se adaptar graças ao projeto, que oferece inúmeros tipos de pranchas, para vários tipos de postura. “Isso me ajudou muito para que eu tenha um novo ânimo para encarar o tratamento e a recuperação.”
Em relação aos benefícios da prática, ele diz: “O surf me ajuda na coordenação, na hora de ficar em pé, no equilíbrio, pois tenho muito desequilíbrio, devido à lesão medular. Ajuda, também, na força das pernas, porque a gente pega onda e depois volta andando para o fundo, várias vezes. Só nesse exercício é exigido muito esforço físico”.
Sonho
Outro caso emblemático é o de Sara Neves Macedo, 29 anos. No dia 24 de dezembro de 2016, ela sofreu um acidente de moto, que causou um grave problema medular, chamado lesão total de plexo braquial, que é o desligamento dos nervos do braço com a medula. Com isso, ela perdeu os movimentos e a percepção da mão e do braço direito, o que causa forte dor crônica.
“Comecei a praticar na primeira turma do surf adaptado, em janeiro de 2020. O surf para mim é a realização de um sonho. Eu já tinha o desejo de aprender a surfar antes do acidente. Depois do que ocorreu, achei que não iria mais poder praticar e ter de refazer os planos”, conta.
Sara revela que em meados de 2019 ficou sabendo que seria inaugurada em Santos uma escola especializada em surf adaptado. “A notícia fez meus olhos brilharem. Fiz a inscrição na primeira turma e, desde então, venho quebrando barreiras. Cada pequena conquista, cada pequeno desenvolvimento na prancha, é uma felicidade imensa”, destaca.
“O surf me ajuda no equilíbrio, estimula a percepção do corpo e do meu braço. Estou recuperando isso, além de ajudar muito na autoestima, na confiança de poder me desafiar em outros aspectos, além do surf”, acrescenta.
Além disso, Sara revela que quando está no mar, seu braço responde melhor aos estímulos. “Sinto diminuição considerável no quadro de dor crônica, tanto durante a aula, quanto depois.”
Qualidade de vida
Idealizador do projeto, Cisco Araña, lendário surfista, hoje com 62 anos, coordena as atividades. Com cinco décadas dedicadas ao esporte, ele conta que a ideia surgiu pela demanda de alunos com deficiência.
“A iniciativa é de extrema importância. Reflete ao mundo possibilidades de oferecer espaço para pessoas que não tinham esse tipo de ferramenta para melhora da qualidade de vida. Também é importante para o surf, porque uma escola gratuita nesse nível é inédita, com essa estrutura física e com essa equipe, além de ser um exemplo bem-sucedido de parceria público-privada”, afirma.
Cisco explica que a escolinha recebe pessoas de todas as idades. “Nossa estimativa é atender 240 alunos. São quatro programas de dez aulas por ano. Nós oferecemos inovações de equipamentos feitas por nós, com design meu, pranchas para cegos e multifuncionais, entre outras coisas.”
O surfista revela que, ao todo, são 11 pessoas envolvidas no projeto, incluindo um terapeuta ocupacional, para dar o primeiro acolhimento às famílias. “Isso é importante para que a gente possa proceder os protocolos e ações direcionados, especificamente, para cada aluno. Temos, também, professores de Educação Física.”
Estrutura
A reforma do local onde funciona a escola consistiu na reformulação da área interna, com a implantação de uma sala de treinamento funcional (com ferramentas para exercícios), espaços para acondicionamento de pranchas e salas de apoio para instrutores e atendentes. Houve impermeabilização do piso superior e adaptações, como rampas e corrimãos para ampliação da acessibilidade.
A iniciativa foi viabilizada graças à parceria da prefeitura de Santos com a Blue Med Saúde que, por intermédio da Associação Alvorecer, garantiu a contratação dos profissionais (professores, coordenador e terapeuta ocupacional), além do fornecimento de equipamentos, como pranchas e uniformes.
Serviço
A escolinha foi inaugurada no início de 2020 e fica no Posto 3, localizado na orla do Gonzaga, próximo à Rua Marcílio Dias. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas no local. As aulas ocorrem de terça a sexta-feira, por um período de dez semanas. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (13) 3251-9838.