A Baixada Santista já foi considerada um polo cultural e um dos principais nascedouros do teatro e da literatura nacional. Nomes como Patrícia Galvão (Pagu), Rui Ribeiro Couto, Plínio Marcos, Pedro Bandeira, Maria Valéria Rezende, José Roberto Torero e Manoel Herzog saíram de Santos para ganhar o Brasil e o mundo, por meio de suas obras.
Para justificar a tradição, a cidade abriga, há mais de uma década, um dos eventos do setor mais importantes do país: a Tarrafa Literária – Festival Internacional de Literatura de Santos, que em 2020, entra em sua 12ª edição.
Idealizado e criado pelo livreiro José Luiz Tahan, proprietário da Realejo, charmosa livraria de rua, onde se respira cultura, o festival, ao longo de sua história, já trouxe para Santos mais de 350 autores do Brasil e de diversos outros países.
Em entrevista para a Folha Santista, Tahan fala sobre a origem da Tarrafa, os desafios e dificuldades para levantar um evento desse porte, conta curiosidades sobre autores e relembra alguns dos principais nomes que passaram pelo festival.
Folha Santista: Desde quando existe a Tarrafa Literária?
José Luiz Tahan: A Tarrafa Literária estreou em 2009. No entanto, a decisão de fazer, construir o festival foi aparecendo ao longo da vivência dos trabalhos. Em 2009 foi a estreia, mas desde 2007 eu estava, objetivamente, empenhado em realizar o festival.
Folha Santista: Como surgiu a ideia de criar o evento? Qual foi sua inspiração?
Tahan: A ideia de criar a Tarrafa Literária foi sendo fermentada com minha experiência de livreiro. Eu comecei a trabalhar como funcionário da extinta Livraria Iporanga em 1990, com 18 anos. Desde a experiência daquela clássica livraria de rua em Santos, nós sempre aproximamos os leitores dos autores, fazendo sessões de autógrafos e eventos. Eu acho que a cidade de Santos tem uma vocação especial, acolhimento e estrutura por ser próxima da capital. A história particular da cidade é muito forte, o que faz com que ela possa ser sede de um grande festival literário. Não só literário, mas de outros segmentos de Cultura. Quanto à inspiração, há alguns eventos os quais sempre estudei, visitei e li muito sobre, como a Jornada Literária de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e a Flip, em Paraty.
Folha Santista: O que mudou da primeira edição até hoje?
Tahan: O que mudou até hoje é que fomos acrescentando mais ideias. Eu digo que a Tarrafa começou grande. A Tarrafa já nasceu decidida e os desenhos principais de estrutura são mantidos desde então. O que fomos acrescentando, transformando foi ter, por exemplo, um autor homenageado a cada ano. Um autor que tenha deixado marcas literárias em Santos, ou que tenha nascido, ou que tenha tido alguma relação com a cidade, com a história da região. Começamos com o Ranulfo Prata; no ano seguinte foi o Osvaldo Moles; e este ano, nós vamos homenagear a escritora nascida em Santos, Maria Valéria Rezende.
Folha Santista: Quais foram as principais dificuldades iniciais para organizar um evento desse porte e quais são as de hoje?
Tahan: As dificuldades não são poucas. As primeiras foram de ordem de experiência estrutural. Entender até onde chega o volume de trabalho, porque era tudo novo e ficávamos bastante apreensivos no início da caminhada. Essas vão diminuindo com a experiência. Hoje, temos muita consciência do que nós vamos enfrentar e realizamos bem o trabalho ano a ano. Já a dificuldade que se renova, o desafio, é de viabilização comercial. Ou seja, aprender a fazer os trabalhos relacionados à busca de patrocínios; relações institucionais, nas alçadas federal, estadual e municipal; relações com o meio acadêmico; com escolas. E a parte prazerosa, claro, é estar perto do público e construir os conteúdos. O conteúdo é o grande prazer: pensar as mesas de debates, pensar quais os autores que estarão conosco.
Folha Santista: Que tipo de apoio, público e privado, você consegue ter para organizar o evento? Como faz para bancar receber tantos astros da literatura?
Tahan: Temos todo um projeto de captação de recursos, que se utiliza de incentivos fiscais, sejam eles federais ou estaduais. No âmbito municipal nós temos apoio, eventualmente, de alguma emenda da Câmara de Vereadores e das secretarias de Cultura e Educação. É um grande desafio, mesmo. Estamos sempre atentos no sentido de conseguir viabilizar o festival ao a ano. O festival tem uma grande estrutura e a preocupação é obter os recursos manter a qualidade, o grande nível do evento e remunerar todas as equipes: produção, comunicação, formatação, prestação de contas e o valor mais importante para nós do festival: a remuneração dos escritores e escritoras que estarão conosco.
Folha Santista: Pode mencionar algumas das principais atrações da Tarrafa em todas as edições?
Tahan: Podemos lembrar Luis Fernando Veríssimo, Ruy Castro, Ignácio de Loyola Brandão, os portugueses Gonçalo Tavares, Inês Pedrosa, Ana Margarida de Carvalho, a sueca Katarina Bivald, Célestin Monga, de Camarões. Ao todo, são mais de 350 nomes ao longo dessas 11 edições. É uma bela experiência para nós e, espero, para os leitores também.
Folha Santista: Pode relembrar alguma história de bastidor, engraçada ou curiosa, envolvendo a organização da Tarrafa?
Tahan: Poucas vezes tivemos falha em relação a escritores que não puderam vir. Porém, teve um fato ocorrido na primeira Tarrafa, em 2009. Envolveu o canadense, que morava na França, Jeremy Mercer, autor de um livro genial chamado “Um livro por dia”, que conta a experiência dele em morar na “Shakespeare and Company”, a livraria parisiense. Ele não pôde vir, porque esqueceu de tirar o visto para poder viajar ao Brasil. Jeremy gravou um vídeo, pedindo milhões de desculpas ao público, se dizendo culpado, o causador do problema, tirando a responsabilidade do festival. No vídeo, ele aparece de joelhos, quase rezando, pedindo desculpas para o público. No ano seguinte ele veio e roubou a cena como um dos autores mais simpáticos da história do evento. Outro fator curioso é que, pela primeira vez na vida, ele jogou futebol. Adoramos futebol e, apesar de não sermos grandes craques, temos essa mania de fazer um jogo na Tarrafa. Ele jogou pela primeira vez, tirou a chuteira, pediu para a gente autografar e eu, modestamente, criei um nome para o momento: escrevi Pelé.
Folha Santista: Ao longo dos anos, você teve e tem contato direto com inúmeros escritores, brasileiros e internacionais. Observou algum fato estranho, por conta de excentricidades de algum dos autores?
Tahan: Na verdade, presenciei poucas esquisitices. Uma que me lembro agora foi com o poeta, pensador de grande texto da África, o camaronês Célestin Monga. Ele sempre pedia, em um pequeno intervalo de horas, uma jarra de água muito quente para beber chá. Nós tínhamos de ficar atento às vontades, aos rituais do camaronês. Ele adorava beber o chá quente, enquanto estava no hotel esperando para participar dos trabalhos.