Por Coletivo Abraço ao Patrimônio
Um mês antes de a pandemia de Covid-19 ser declarada, quando os abraços não eram arriscados, sob os auspícios das garças que frequentam o local, dezenas de defensores da memória da cidade deram as mãos e formaram um cordão para dar um, bem apertado, na edificação original do Mercado de Peixes de Santos. Era das derradeiras tentativas para manter de pé uma construção ícone da vida caiçara.
Dissemos que os abraços ainda não eram perigosos, se bem que aos olhos dos predadores do patrimônio em busca do lucro imediato a qualquer preço, sim, aquele abraço tinha um quê de ameaça. Porque ele teria força suficiente para ecoar como um basta aos tempos em que os interesses do mercado imobiliário passavam por cima dos tijolos já erguidos, desconsiderando a história que simbolizam.
Os braços ali unidos defendiam o patrimônio arquitetônico, artístico, cultural, portanto protegiam elemento constituinte da memória e da identidade de um povo. O gesto não foi o bastante para evitar a demolição do prédio – um exemplar da arquitetura modernista, de autoria de Antônio Carlos Quintas, arquiteto dos quadros efetivos da Prodesan, a companhia pública municipal de desenvolvimento urbano. Mas aquele abraço não foi em vão, não.
A demolição era justificada pelo poder público e pela empreiteira responsável pela obra como necessária para o projeto de modificação urbana daquele entorno, na Ponta da Praia. A praça onde o mercado se situava seria ampliada e nela seria instalada um centro de convenções. O comércio de pescados seria transferido para um novo prédio, poucos metros adiante, supostamente mais moderno.
Tudo bem, defender o patrimônio não é se opor à modernização. Ao contrário, é assegurá-la, de maneira sustentável, e socialmente responsável. Logo, o comércio poderia ser transferido para um novo mercado, o centro de convenções poderia ser levantado. Nada impedia, contudo, que a emblemática construção ficasse de pé, com outro uso. Dezenas de sugestões foram dadas, nesse sentido.
Chegou-se a tentar o tombamento oficial da edificação, todavia sem sucesso. Então, veio a ideia daquele abraço. Em uma manhã de um sábado, 15 de fevereiro de 2020, o velho Mercado de Peixes foi protegido pelo cordão humano, apoiado pelas aves de pernas longas que coabitam o local. O ato reverberou.
Começou a pegar mal: como convencer a população de que aquelas obras todas eram para o nosso bem, se nosso bem maior, dali, seria sumido?
Semanas depois, as paredes até foram postas abaixo. As bancadas, o painel com o desenho de peixes estilizados, os sanitários e outros elementos também foram retirados. A cobertura em arcos, no entanto, ficou, contrariando o previsto no projeto original, oficialmente divulgado.
Então, as abóbodas permaneceram e lá estão, resistindo. É verdade que apenas parte delas, o que prejudicou estética e funcionalmente o conjunto. As feiras criativas que agora ocorrem naquela praça, por exemplo, carecem de infraestrutura que a antiga edificação fornecia. A cidade paga um preço alto pelos equívocos do poder público e do poder econômico.
Quando uma criança, brincando naquela praça, perguntar, diante das abóbodas restantes, “o que é isso?”, será informada de que se tratam de reminiscências do velho Mercado de Peixes, fruto de um processo e contexto histórico. E então, como hoje nos indignamos ao vermos que nada restou do Clube XV, do Parque Balneário, da casa do Pelé no Canal 7, a criança certamente se indignará também. Tomara sua geração seja mais consciente e impeça a repetição, da repetição, dos erros.
Janeiro de 2022, dia 16. Um domingo. Completam-se 40 anos da inauguração do Mercado de Peixes de Santos. Do prédio original, até a placa descerrada no 16 de janeiro de 1982, dela não se sabe o paradeiro.
Resilientes mesmo, as abóbodas ficantes. E as garças, que rodeiam agora o prédio novo, entregue em 2020, mas são testemunhas de toda essa história aqui relatada.
Celebrando o aniversário e a luta pela preservação da nossa arquitetura, história e memória, o documentarista Petruccio Araujo lançou recentemente o curta-metragem “Garça Que Te Quero Peixe”. O filme expressa as motivações daquele abraço. À criança curiosa sobre as abóbodas, o documentário pode ajudar na resposta.
Está disponível aqui na internet, no YouTube.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.