Por Jaqueline Fernández Alves*
Recentemente foi veiculada nas mais variadas mídias uma imagem que causou muito incômodo: a descaracterização total de um edifício eclético no bairro Paraíso na cidade de São Paulo. Trata-se do Barnaldo Lucrécia, um conhecido e muito frequentado restaurante que, da noite para o dia, se transformou em mais um horrendo edifício sem graça, causando uma empatia coletiva por conta da sua brutal transformação.
O edifício não era tombado e não possuía nenhum tipo de tutela. Dessa forma, a reforma que sofreu está dentro da legalidade, o que tornou o assunto ainda mais relevante.
As políticas públicas de preservação do Brasil, se comparadas a outros países europeus, por exemplo, é recente. Foram sendo criadas a partir de 1937 e, desde então, foram muitas iniciativas, muitos avanços e uns tantos retrocessos.
Entre tantos sobressaltos nos encontramos com um quadro especialmente preocupante, devido à contratação de profissionais sem expertise para ocupar os cargos do mais importante organismo nacional de patrimônio histórico – o IPHAN, levando muitos especialistas de altíssima qualidade que atuam no país a um certo isolamento.
Aparte do cenário nacional atual, vale lembrar que a percepção do patrimônio ambiental urbano, como alavanca de desenvolvimento econômico e turístico, teve protagonismo nas políticas públicas urbanas a partir dos anos 1970. As cidades cresciam e impactavam os valores culturais da sociedade, do seu modo de vida, destruindo seus elementos construtivos e a sua maneira de ser.
Dessa forma, a preocupação com a preservação e a revitalização das cidades e de seus centros históricos fez com que o turismo se tornasse um benefício. Dentro desse parâmetro podemos citar o caso santista, com a criação, em 2003, do programa de revitalização Alegra Centro.
Ainda que idealizado tardiamente em detrimento do que já acontecia em outras cidades brasileiras, o programa se apresentou como um reflexo dessa visão mais ampla de patrimônio histórico urbano.
O programa, como havia sido pensado inicialmente, acabou sucumbindo pela falta de planejamento adequado a médio prazo e o que se vê é uma grande área sob tutela onde se evidencia a recuperação das fachadas apenas.
No caso do Barnaldo Lucrecia, o desaparecimento repentino de um exemplar latente na memória coletiva de quem frequentava o lugar ou passava por ali todo o dia é que nos faz questionar quais são esses lugares da cidade que ainda não receberam nenhum tipo de acautelamento e que, paulatinamente, vêm sendo apagados sem deixar vestígio algum.
No caso santista, a legislação que protegeu as fachadas do Centro foi a responsável pelo não desaparecimento do relevante conjunto arquitetônico do período do café. Ainda assim, são inúmeros exemplares descaracterizados por falta de conservação preventiva ou por livre arbítrio de seus proprietários e de alguns gestores públicos, que, por falta de informação, insistem em nomear a legislação como “aquela que engessa”, o que na verdade deveria ser entendida como a que qualifica melhor o ambiente urbano.
Papel dos conselhos de preservação
O Estatuto da Cidade, lei criada em 2001, determina que uma gestão democrática deve ter a participação popular e a criação de conselhos gestores nas cidades, desde então, é uma realidade.
Assim, os conselhos de preservação municipais passam a ter um papel crucial na aplicação de instrumentos legais, que possam, definitivamente, contribuir para que se coloque em prática políticas preservacionistas.
O Condepasa – Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos foi criado há 30 anos e, desde então, é o organismo competente que define regras e propõe soluções para a salvaguarda do patrimônio histórico da cidade.
Entre suas competências está a própria definição da política municipal em defesa do patrimônio, deliberação sobre tombamentos, promoção de estratégias de fiscalização, participação na elaboração de planos e projetos, manutenção de contatos permanentes com organismos públicos e privados, nacionais e internacionais, visando obtenção de recursos, cooperação técnica no planejamento das etapas de preservação e revitalização de bens culturais da cidade.
Ainda assim, o exemplo do Clube Atlético Santista, um exemplar modernista construído em 1947 e projeto dos arquitetos Icaro de Castro Mello e Oswaldo Correia Gonçalves, padece, ao se constatar que teve seu pedido de tombamento solicitado em 2011 e, até o momento, permanece sem ser analisado.
O pedido de tombamento foi elaborado por um grupo de professores e universitários, que entendiam que o edifício seria o último exemplar característico da Arquitetura Moderna esportiva na cidade, já que naquele momento a maioria dos clubes sociais esportivos havia sido demolido.
O edifício, ainda que não tenha sido totalmente construído de acordo ao projeto original, obedece às feições dessa arquitetura e seria de relevância a discussão sobre o tema. No caso especifico do Atlético Santista, um empreendimento estava sendo elaborado para o lugar. Com a demora em definir o seu futuro, o edifício acabou sendo abandonado, culminando em um pequeno incêndio ocorrido recentemente no seu interior.
A legislação existe, o patrimônio tutelado também, mas, mesmo assim, persistem a destruição e o descaso. Apesar dessa dicotomia causar indignação, não há outra forma de tornar real a preservação, sem a participação do Estado que planeja, executa e, por vezes, assiste estático à degeneração de nossa memória.
É, também, atribuição dos conselhos de preservação promover e identificar o patrimônio cultural e natural. Dessa forma, a elaboração de um inventário que promova o reconhecimento dos valores culturais da cidade, seja material ou imaterial, é urgente.
Essa fruição que um inventário pode trazer ao patrimônio histórico e cultural santista irá estabelecer quais são os lugares da memória da cidade. Uma vez identificados, os proprietários devem receber auxilio técnico e incentivos fiscais, enfrentando a valorização da preservação como um bônus.
Os conselhos são os lugares onde a população participa, onde ela diz o que é importante para sua memória e a falta de diálogo desses atores é que cria o engessamento, que desinforma e destrói.
A cidade de Santos não merece que se continue tratando mal o seu patrimônio, são inúmeros os exemplos similares ao Barnaldo Lucrecia, e, tampouco, merece o futuro que a espera com a quantidade de lugares da memória prestes a desaparecer se alguma ação efetiva não for levada a cabo.
A memória é solidificada com a arquitetura, é nela que perpetuamos todas a relações humanas. Não basta só gostar de fotografia antiga e lamentar quando a cidade e suas referências deixaram de existir.
O engessamento de uma cidade não se dá porque uma legislação foi criada com o intuito de preservar a sua memória e a melhoria da qualidade de vida urbana de todos. Essa afirmação é um equívoco semântico.
O engessamento se dá quando as políticas públicas não são executadas devidamente, são desviadas de seu propósito e não são informadas adequadamente à população. A participação do cidadão e a sua representatividade nos conselhos solidifica a verdadeira razão da preservação da memória.
*Jaqueline Fernández Alves é arquiteta e urbanista especializada em restauração do patrimônio histórico e cultural; doutoranda pelo programa de pós-graduação da Universidade São Judas Tadeu; professora universitária; conselheira do CAU/SP; conselheira Suplente do Condepasa; gestora do coletivo Jornada Santista do Patrimônio Histórico; criadora do blog Santos Antiga @blog_santos_antiga.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista