Como começa uma relação de afeto? A qualquer momento duas ou mais histórias podem se enroscar como novelos e até dar nós que não são facilmente desatados. Delicados fios que podem tecer um caminho juntos ou, às vezes, se esgarçar com o tempo, necessitando de remendos e cortes.
Quando tento lembrar do começo da minha relação com seu Firmino, nordestino emigrante do Sergipe, lembro da simpatia de sua voz e das castanhas que ele sempre me trazia a cada vinda do Nordeste. Isso bastou para nos aproximarmos e termos hoje a relação de afeto construída.
Assim como minha história com seu Claudio, paulista e ex-militar, que começa com o compartilhamento de títulos de livros e nas divergências de pensamentos políticos. Dei a ele os livros “Armas, Germes e Aço”, de Jared Diamond, e o “O Macaco Nu”, de Desmond Morris. E tenho três livros dados por ele: “Os Pilares da Terra”, de Ken Follet, “O Túmulo do Fanatismo”, de Claudia Berliner e Voltaire, e “Antes que Anoiteça”, de Reinaldo Arenas. Este último, ganhei após minha viagem para Cuba quando vim contaminada com ideias da revolução cubana.
Janaína tinha uma personalidade forte como seus braços, por ser praticante de surf, e acho que nossa intimidade começou porque nunca fugi de suas perguntas difíceis. Ela era corajosa ao perguntar e eu tentava sempre ser para responder. Tanto que no final de sua vida, compartilhamos decisões delicadas e emiti opiniões pensando que seria importante para ela meu apoio.
Juliana desde o começo me encanta. Talvez por ter meu nome ou pela forma como lida com as adversidades da vida. Já éramos bem ligadas antes de descobrir que seu marido é cervejeiro. Agora, a gente sempre troca ideia sobre rótulos de cervejas e sobre bulas de morfina. O grande desafio atual é controle de dor, que vem piorando nos últimos meses.
Histórias de pessoas e de afetos que começam a qualquer hora e qualquer momento. Profissionalmente, quando ouço a demanda de saúde de alguém, me aproximo de sua biografia, de seus valores e de sua identidade social. Isso pode ser um canal estreito de abertura à intimidade.
Entendo que sou alguém que auxilia tecnicamente o outro a lidar com as restrições biológicas impostas pelas doenças e ajuda nas tomadas de decisões. Tanto quanto prescrever uma quimioterapia, preciso dar meus ombros e meus ouvidos. Ouvir desperta a humanidade que há em mim, porque me reconheço em algum momento da narrativa do outro. Todos nós temos medos e alegrias que, compartilhados e compartilhadas, tocam e podem ser o começo de uma relação.
O cuidado paliativo está sempre lidando com dilemas delicados, porque não há respostas prontas para muitos casos. O tratamento de um câncer de mama ser mastectomia é uma vitória ou um fracasso?
Não estou minimizando a cura que tratamentos podem proporcionar, mas ter retirada uma das mamas é a representação de sucesso? Talvez o corpo da pessoa não tenha mais evidência do câncer, mas e a alma? É possível medir parâmetros laboratoriais em exames de sangue, e os sentimentos, como se medem? Nas palavras, na troca de confiança e confidências com o outro. No abrir-se com o outro. E é entendendo quem é esse outro e sua história que respeitaremos sua biografia em decisões éticas.
Voltando ao seu Jose Firmino, ele tratava comigo de um câncer de próstata. Sergipano que morava no Guarujá, trabalhava como ferreiro em construções e amava o Nordeste, São João e Luiz Gonzaga. Como seu câncer de próstata ficou muitos anos sob controle, minha memória mais frequente era dele bem alegre me contando sobre suas viagens pelo Nordeste, cantando seus forrós e me dando castanhas de presente. Estava sempre com sua pele curtida pelo sol e com um chapéu sertanejo.
Em meados de maio de 2020, ele chegou em consulta apoiado em uma bengala, pálido e fadigado. Sua pele com um tom bem diferente do habitual. Internado, descobrimos um câncer de estômago avançado que, sangrando, foi minando sua energia vital. Mas, mesmo assim, ele nos prometia uma galinhada ao final de sua internação.
Porém, a internação não acabou até agora e o corpo de seu Firmino segue enfrentando as adversidades de colchões, lençóis, cateteres venosos, oxigênio. Há três semanas me deu uma flor como forma de agradecimento à nossa amizade e me disse que era pra eu me lembrar dele toda vez que a visse.
Estou saindo de férias no mês de novembro de 2020 e não sei se vejo novamente seu Firmino. Esta semana, ao encontrá-lo meu coração pensou que poderia ser nossa última semana de proximidade física. Passei o dia pensando nele e nasceu uma poesia num formato que me lembra um cordel:
Seu José Firmino
É um minino
Nordestino
Sergipano
De oitenta ano
Qui nasceu em Pinhão
E não perdia um São João
Teve três fio
Que criô com muita educação
Trabalhando na construção
Depois de Luiz Gonzaga
Seu maió prazê era dar uma passeada
Pra vila em Mangue Seco
Quem sabe até comê uma carangueijada
Apesar de que ele o que ele gosta mêmo
É de uma galinhada
Passo aqui pra agradecê todo amô
E dizer que na minha sala estará sempre sua flô
Uma orquídea linda pra espantar a dô
No meu último dia antes das férias entreguei esse cordel para ele acompanhado de uma foto nossa de quando ele me deu a flor. Como diria Antônio Cândido, professor e sociólogo, o tempo é o tecido de nossas vidas. Espero que eu consiga costurar minhas linhas em outras, traçando um longo fio, que consiga ultrapassar qualquer fronteira dos afetos.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista