Início Colunas

“Torto Arado”, Rosa Luxemburgo, luta feminista e economia solidária

Newton Rodrigues reflete sobre a luta feminista: “É de todos nós e o lugar de fala dos progressistas deve ser aquele de quem sofre no sistema capitalista”

Foto: Divulgação

Recentemente concluí a leitura do livro “Torto Arado”, escrito pelo geógrafo Itamar Vieira Júnior, premiado com o Jabuti e o Oceanos. A história se passa na fazenda Águas Negras, situada no sertão da Bahia. O autor não precisa a época, o que leva o leitor a ficar em dúvida quando se passa, visto que ao mesmo tempo em que há trabalho escravo, surgem elementos que nos indicam que se trata da década de 60, como um automóvel Rural ou uma motocicleta.

Porém, o leitor menos atento pode acreditar que essa história se passa no século XIX, logo após a abolição da escravatura ou no século XXI, considerando a situação da população em alguns locais do Brasil.

A história é narrada por três mulheres, sendo que a terceira é surpreendente por ser uma personagem pouco comum em romances.

O livro nos traz elementos de exploração da mão de obra das mulheres negras, da violência doméstica praticada por seus companheiros em casa, reproduzindo o tratamento bruto que recebem pelos proprietários e gerente da fazenda; do trabalho realizado até a exaustão na roça e no extrativismo; do sexo praticado como uma obrigação, ou seja, mais um componente das tarefas domésticas.

Esse quadro não é exclusivo das mulheres negras da fazenda Águas Negras do interior da Bahia na década de 60. Trata-se de uma construção histórica para viabilizar o acúmulo do capital, desde que os portugueses pisaram nessas terras e ainda se encontra presente em vários locais.

Rosa Luxemburgo, revolucionária polonesa que viveu entre 1871 e 1919, afirma em seu livro “Acumulação do Capital”, de 1913, que o capitalismo, para se viabilizar, depende de expansão, com a incorporação de outros territórios e economias à sua lógica.

Essa afirmação continua atual, considerando, por exemplo, a destruição da Amazônia, a invasão de terras indígenas pelo agronegócio, madeireiras e mineradoras. Essa expansão também ocorre com a privatização do Estado e a desregulamentação das leis trabalhistas, com a “uberização” da sociedade.

Enfim, a lógica da acumulação é o principal fator de manutenção do sistema capitalista desde a sua emergência. David Harvey em seu livro “O Novo Imperialismo”, destaca que o processo de acumulação primitiva, apontado por Karl Marx, se aperfeiçoa ao longo do tempo e se torna uma acumulação por espoliação. Afirma que“a forte onda de financeirização, domínio pelo capital financeiro, que se estabeleceu a partir de 1973, foi em tudo espetacular por seu estilo especulativo e predatório”.

A revolucionária polonesa também apontou como integrante da lógica de acumulação do capital a imposição às mulheres da realização de trabalho não remunerado para cuidarem da limpeza da casa, dos idosos, crianças da família, das roupas e preparo da alimentação de todos.

Essas atividades, denominadas como trabalho reprodutivo, viabilizam o funcionamento do sistema capitalista para a realização do trabalho considerado produtivo, como o funcionamento da indústria, do comércio, da agricultura vinculada ao agronegócio.

O trabalho reprodutivo, não remunerado, proporciona condições para que o trabalhador venda a sua mão de obra e viabilize o sistema de exploração. Além disso, os filhos criados por ela são os substitutos dos pais e dão continuidade à perversidade proporcionada pelo sistema capitalista.

Pode-se considerar que, além das atividade domésticas, muitas mulheres assumem um trabalho informal ou assalariado mal remunerado e ainda realizam o trabalho não remunerado em suas casas. Essa condição foi construída historicamente com a emergência e consolidação do patriarcado.

Em seu livro “The Will to Change”, a intelectual feminista norte-americana bell hooks – a autora assina as suas publicações com este pseudônimo escrito em minúsculo para evidenciar que ideias são mais importantes que os nomes – afirma que o patriarcado “é um sistema sociopolítico fundamentado na dominação dos homens, considerados superiores e detentores do direito de assim procederem e manterem a dominância por meio de diferentes formas de terrorismo psicológico e violência”.

Assim, as mulheres estão submetidas à exploração pelos proprietários dos meios de produção e, nas suas casas, por aqueles que deveriam ser seus companheiros. Formou-se, ao longo do tempo na sociedade, a opinião de que as mulheres devem se limitar à realização de trabalhos domésticos e de cuidados e se submeterem à constante avaliação e desejos dos homens, não faltando com obediência.  

Rosa Luxemburgo foi a primeira feminista que apontou dois fenômenos vinculados à acumulação do capital: a pilhagem dos recursos naturais da população do hemisfério sul pelos países imperialistas europeus e a exploração da sua população como mão de obra escrava e em particular das mulheres.

A intelectual bell hooks arremata: Oos povos não brancos e os recursos dos seus países foram saqueados pelos capitalistas de supremacia branca”.

Dessa forma, as condições de vida dos personagens, homens e mulheres, do livro “Torto Arado” são consequências históricas do imperialismo por meio do colonialismo.

Ao analisar as opressões sofridas por mulheres negras na sociedade capitalista, a advogada norte-americana Kimberlé Crenshaw afirmou, em 1989, que há um cruzamento de fatores como a cor da pele e o fato de serem mulheres.

Além disso, a idade um pouco mais avançada é também utilizada como fator de opressão, talvez por serem consideradas pouco úteis ao capital.

Assim, há uma interseccionalidade de opressões. Quando uma mulher negra de 50 anos de idade é contratada somente para fazer limpeza dos ambientes onde os brancos trabalham ou é demitida de um emprego antes das mulheres brancas, qual o fator que influenciou? A interseccionalidade de opressões pode nos levar a diferentes interpretações, mas todas devem ser fundamentadas no fato de que há discriminação.

A cientista política francesa Françoise Vergès, em seu livro “Um Feminismo Decolonial”, afirma que são as mulheres racializadas que limpam o mundo, que ganham um salário baixo para exercerem funções como limpar, realizar trabalhos duros, carregando pesos considerados acima do suportável, e materiais tóxicos.

Quando todos acordam, escreve a autora, tudo está limpo para que o capitalismo funcione. Enquanto isso, cansadas e sonolentas as mulheres utilizam transportes coletivos com tarifas elevadas e inseguros para retornarem às susas casas, onde comumente começam uma outra jornada de trabalho.

Durante a pandemia provocada pelo coronavírus, os riscos que essas mulheres correm são ainda maiores, pois não podem ficar em suas casas para se protegerem, visto que realizam trabalhos essenciais.

Vergès afirma que é necessário haver um feminismo decolonial para combater o racismo, o patriarcado, o capitalismo e o imperialismo.

Decolonizar é um neologismo, ou seja, palavra derivada de outra já existente. No caso a palavra de origem é descolonizar. Já decolonizar se refere à necessidade de denunciar e tornar visível o que permanece vigente, porém negado da estrutura colonial nas sociedades pós-coloniais.

Dessa forma, segundo a autora, “o feminismo decolonial, antipatriarcal e anticapitalista é aquele que leva em conta as consequências da colonização nas relações atuais para repensar o feminismo por dentro, obrigando-o a entrecruzar questões de gênero e raça, já bem mapeadas pelo feminismo negro, mas especialmente a variável da desigualdade derivada do capitalismo”.

A intelectual bel hooks enfatiza que “o efeito contínuo do patriarcado capitalista, da supremacia branca e imperialista é uma interseccionalidade que deve ser examinada na totalidade de seu efeito sobre as mulheres, se as feministas quiserem melhorar a vida de todas as mulheres”. 

Para superar as consequências da colonização tão bem expostas em “Torto Arado”, há a necessidade de uma organização da sociedade que elimine qualquer sinal de exploração, onde as relações sejam horizontais, o trabalho uma via de emancipação e exercido de forma associada.

A Economia Solidária (EcoSol) se apresenta como a forma mais indicada de organização da economia e da sociedade para que esses objetivos sejam alcançados. Atualmente, observa-se uma expressiva participação das mulheres nos empreendimentos econômicos solidários, como associações e cooperativas, assim como em grupos informais que produzem e prestam serviços.

A EcoSol mostra-se feminina, mas não com a cara da mulher branca privilegiada, pois esta mulher não experienciou as forças opressivas que sufocam e discriminam historicamente a mulher negra.

Os empreendimentos econômicos solidários representam mais que organizações que geram renda, mas que emancipam com base na solidariedade em forma de reciprocidade entre mulheres.

No entanto, para que a EcoSol se torne feminista, há a necessidade que se expanda, que as mulheres lutem para irem além da liberdade de usarem a roupa que quiserem e estarem ou fazerem o que desejam sem interferência masculina.

Há necessidade de lutarem contra o patriarcado em sua totalidade, ou seja, em uma perspectiva de luta de classes para que a emancipação seja plena.

Rosa Luxemburgo também lutou para que as mulheres tivessem direito ao voto, o que é básico para o exercício da cidadania. A escolha de governantes comprometidos com as reivindicações dos movimentos feministas é fundamental. Desconstruir o patriarcado é determinante para a construção de uma sociedade democrática. No entanto, o que colocar no lugar?

As políticas públicas de EcoSol, em interação com as organizações feministas, podem proporcionar inclusão plena das mulheres, com geração de renda e apoio mútuo para o enfrentamento das opressões. A EcoSol é agregadora de todas as lutas e aponta para a construção de um socialismo autogestionário. Por isso, deveria ser assumida por todos os movimentos sociais e partidos políticos progressistas.

Por que um homem branco escreve sobre um tema referente às mulheres e ousa apontar caminhos para a decolonialização da sociedade e promover inclusão socioeconômica? Pelo simples fato de entender que a luta feminista é de todos nós e que o lugar de fala dos progressistas deve ser aquele de quem sofre no sistema capitalista. 

A emancipação das mulheres passa, também, pela reeducação dos homens para que dividam as tarefas domésticas e de cuidados dos filhos e idosos e não apenas ajudem em casa. 

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista

Sair da versão mobile