“Sim, eu sei que o mundo
seguirá girando quando
já não haja nada”.
(Vitor Ramil).
Alexander percorre uma sala escura e vazia enquanto ouve a voz de Anna, sua esposa que já morreu (quando?). Caminha devagar, explorando o desconhecido, parece até um pouco resistente. A câmera é intencionalmente lenta, convoca-nos a outro tempo, tudo pertence a outro tempo no cinema do grego Theo Angelopoulos.
– Eu estou escrevendo para você de frente para o mar, de novo e de novo. Eu escrevo para você, falo com você. Um dia, quando você se lembrar deste dia, lembre que eu o olhei com olhos plenos, que o acariciei com as duas mãos. Eu estou aqui esperando por você, trêmula. Me dê este dia.
A porta se abre. Na varanda, uma mulher desconhecida balança um berço, coberto por um manto de renda. Do alto, avista-se um grupo de pessoas tocando e cantando numa praia, o mar da Grécia diante deles. Estão vestidos em variações de branco. Parece um casamento…ou um funeral? Com certeza é um ritual.
É Anna quem está lá, na praia, com seus cabelos esvoaçantes. Ela chama por Alexander, que caminha em sua direção, a câmera, subjetiva, a acompanhar o olhar do poeta. Anna, então, dirige-se a ele, que surge por trás da imagem, chamando-a:
– Anna?
– Quer dançar? Você não gosta disso, não é? Eu sei, mas hoje é meu dia…
Eles começam a dançar, deliciosamente, e os músicos e demais personagens se juntam ao baile. Alexander olha apaixonadamente para Anna que acaricia seu rosto.
Caminham, só os dois, em direção ao mar.
– Anna, eu não quero ir para o hospital. Eu não quero ir para o hospital, Anna. Não quero.
(silêncio)
– Eu quero fazer projetos para amanhã. O vizinho desconhecido vai sempre responder-me com a mesma música. E haverá alguém para me vender palavras.
Anna sorri, divertida. Dança sozinha.
(…)
– Amanhã. O que é o amanhã, Anna? Eu lhe perguntei uma vez: quanto tempo dura o amanhã, Anna? E você me respondeu…
– A eternidade e um dia
– Eu não pude ouvir. O que você disse?
Anna grita:
“A eternidade e um dia”.
E desaparece.
* * *
Sento-me no sofá da sala. O sofá branco, de uma loja chique de São Paulo que compramos com o dinheiro de nossas economias, embora amigos e familiares nos recomendassem que não fizéssemos isso porque tínhamos filhos pequenos. O tecido que recobre as almofadas confortáveis está puído, há um rasgo no braço, são muitos anos com esse sofá e ele sobreviveu ao tempo. Sobreviveu às crianças, aos gatos. Sobreviveu a Lia e seguirá comigo. Espero que sobreviva a mim.
Dormi muitas vezes neste sofá nos anos em que tivemos de conviver com o câncer. Às vezes, chegava tarde em casa e não queria incomodar seu sono. Alterar com minha energia demasiado mundana o ambiente calmo que ela havia criado para descansar. Ela chegou a interpretar minha ausência de nosso quarto de casal como sinal de incapacidade de seguir cuidando dela, tão fraturado eu estava. E nós falamos sobre isso, sobre o distanciamento de nossos corpos, sobre como já não seria possível nos acolhermos, nos amarmos, porque ela já não cabia em si, mas eu precisava de seu corpo mais que nunca, sabendo que em pouco tempo só restariam cinzas dele.
Dói lembrar desse impasse, de nosso descompasso, de suas dores intensas.
Nos primeiros meses que vivi na nova casa, no bairro do Gonzaga, após sua morte, também não consegui dormir em nossa cama – ela ainda era nossa cama. Parecia-me impossível repousar sob os lençóis que partilhávamos, os travesseiros, o edredom, tudo igual, mas também completamente diferente. Por isso enchi o quarto, que era meu e queria que fosse nosso, com as caixas de mudança. Fiz dele um depósito das coisas acumuladas ao longo de uma vida juntos, inclusive suas roupas, das quais só me desfiz, com a ajuda de sua melhor amiga, na última semana de 2020.
Em todas essas ocasiões de fuga, era no sofá branco que eu dormia. O mesmo sofá em que ouço repetidamente “Terra (Tierra”), canção de Vitor Ramil, obcecado com o verso “eu pensava em cada dia em alcançar a praia”.
Lia sempre quis viver perto do mar. E eu queria satisfazer esse seu desejo, que, creio, também era meu – ainda estou tentando descobrir meus desejos, o que é meu e o que era dela em mim. Neste janeiro, faz dez anos que me mudei para Santos. Eu ia escrever nos mudamos, por força do hábito, mas ela não completou o ciclo comigo.
Dez anos atrás, não havia nada além de nossa vontade que nos convocasse a viver aqui. Estávamos em busca de uma vida melhor para nós, para nossos filhos, então pequenininhos, mais tempo, mais sol, “alcançar a praia”. Estávamos em busca de nós dois, porque a vida em São Paulo estava abrindo um abismo na nossa relação. Vivemos, na minha opinião, os melhores dias de nosso casamento neste jardim à beira-mar de canais centenários cuja obtusidade local vez ou outra quer enterrar.
Uma vez alcançada a praia, ganhamos asas para voar, ou guelras para cruzar correntes marítimas?
A música de Ramil dialoga com Angelopoulos. Assim eu sinto. O filme narra o último dia da vida de um poeta em busca de sentido para a existência. Na cena final que recriei na abertura deste texto, há um baile à beira-mar, e a revejo enquanto Ramil canta: “o mar promete terra seca ao viajante exausto”. Alexander vai morrer, está pronto para partir, e sua esposa vem buscá-lo. “E descubro que a vida sempre guarda algo preparado que supera a maior das fantasias”, cantarolo, em coro com o poeta gaúcho, criador da estética do frio.
Não tenho dúvida de que viver perto do mar me ajuda na conexão com o sagrado, a reverenciar o infinito e perceber quão pequeno somos diante da imensidão que nos circunda, essa imensidão que começou antes e terminará depois. Lia, com suas asas de borboleta e obstinação de escafandrista, ajudou-me a desenvolver essa consciência, tão bem expressa em um texto de seu diário, escrito um ano atrás:
“Embora o corpo esteja cada vez mais frágil, me sinto lúcida como nunca estive. Presente, por que não, viva. Hoje fui à orla, até a mureta, ver a tempestade chegar. Ventava deliciosamente, a chuva fina anunciava a tal frente fria. Fechei os olhos, e por ali fiquei minutos, desfrutando da sensação de liberdade. Gosto de sentir a pele, os cheiros, o som do mar. Gosto de ficar só. Como se estivesse orando. Uma conexão direta entre eu e o que é divino. Sem palavras. Só sensação”.
A eternidade é marítima.
* * *
Arqueólogo de nós dois, aprendo a escavar memórias, remover escombros emocionais, cavocar sonhos e trocar reminiscências com amigos e amigas que atravessaram nossa vida em algum lugar do passado. Recupero fotos que eu nem sabia que existiam, itens de um acervo disperso com o qual eu talvez jamais tivesse contato não fosse sua morte prematura.
Entre esses vestígios, além das fotos, muitos textos, bilhetes e cartas. Cada um deles a provocar associações em meu cérebro que costuma ser eficiente na armazenagem de informações. Não me lembro qual desses vestígios me transportou ao filme de Angelopoulos, que tanto nos marcou, e que assistimos de mãos dadas, encantados, em um dos muitos cinemas da região da Avenida Paulista.
Passamos dias discutindo-o, depois de assisti-lo, repetindo a pergunta de Alexander: quanto tempo dura o amanhã?
“A eternidade e um dia”.
Entre os bilhetes que ela me escreveu encontrei um que apenas diz: “tempo-será!”
É uma menção a um poema de Manuel Bandeira, que costumávamos ler em nossas sessões de poesia. Jamais deixamos de fazer isso, ler um para o outro, mas nos dias de namoro, costumávamos fazer isso à beira do lago do Parque do Ibirapuera. E o “Estrela da vida inteira”, que eu havia comprado em uma banca da Avenida Paulista, era o exemplar que sempre tínhamos à mão. Lia adorava o poema “Tempo Será”:
“A Eternidade está longe
(Menos longe que o estirão
Que existe entre o meu desejo
a palma da minha mão).Um dia serei feliz?
Sim, mas não há de ser já:
A Eternidade está longe,
Brinca de tempo-será”.
Ao relê-lo, agora, nesta imersão sobre a eternidade em que me encontro, penso sobre ser feliz. Em como fui feliz, em como não deixo de sê-lo, pois posso lembrar.
Quando ela me escreveu o bilhete, queria provocar minha paciência, descobrir se eu seria capaz de aguardar o momento certo de as coisas acontecerem na nossa vida. Era um bilhete senha, que remetia a esse belo poema, ainda mais belo agora, que ela não está mais aqui, e que não sei quando voltaremos a nos encontrar. Em que cada dia é uma possibilidade, em que cada dia pode ser, até que a luz se apague.
* * *
Hoje, não tenho dúvida, viver perto do mar, em Santos, me aproxima dela. Me aproxima do eterno que habita todo amanhecer e também meu coração. Recentemente um amigo querido manifestou preocupação com o fato de eu seguir escrevendo semanalmente sobre minhas dores, sobre nosso amor, sobre o luto que não passou – e não passará tão cedo. Eu acolho sua preocupação, mas não a entendo.
Eu não governo o tempo, nem tenho essa pretensão.
E como diz Alexander, o poeta de “A eternidade e um dia”, um pouco antes de fazer sua passagem para o outro plano, é com as palavras que eu a trago de volta a mim. São as palavras, escritas, recitadas, gritadas nos momentos de desespero, que retomam do tempo a ausência e conectam os sentimentos mais nobres. As palavras, alquimicamente, fundem os tempos, a memória à realidade, a lembrança ao presente.
Se, normalmente, na noite de ano novo costumo sentir uma angústia travessa, que surge provocando minha esperança, empurrando para o lado a alegria que por ventura eu esteja sentindo, neste ano procurei manter-me atento e mandá-la para bem longe. Para isso, fiz uma sessão de meditação por volta das onze horas e virei o ano cantando. Madrugada adentro, acompanhado de poucos amigos queridos e de meus filhos, entoei canções, bebi espumante e celebrei a vida. Recebi e dei amor.
Em meu quintal, a lua cheia nos iluminava, em todo seu esplendor.
A certa altura, perguntei-me: quanto tempo dura um novo ano?
E uma voz soprada pelo vento me respondeu:
– Um ano, meu amor, é feito de amanhãs.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista