O isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19 intensificou rapidamente a migração de experiências presenciais para o campo digital. Já que neste momento as telas das TV’s, celulares e computadores se tornaram a ‘quarta parede’ viável para seguirmos fruindo da arte, cultura e lazer em segurança. Isso só foi possível porque aquela separação imaginária extrapolou o arranjo entre público e plateia, instaurando também a separação física do público entre si.
Outro dia, após uma dessas vivências virtuais, me questionei onde estariam depositadas as recordações que acabara de construir, para que pudesse revisitá-las depois. Quando construímos experiências nas cidades temos a oportunidade de reencontrá-las em forma de memória percorrendo os lugares onde elas aconteceram.
No território virtual que habitamos, cada vez mais e com maior frequência, não é o espaço, mas a tela a mediadora das trocas. Pouco importa em qual bairro, estado ou país se está, fica a sensação de que todos estão localizados à mesma distância.
Esta nova compreensão do espaço, deflagrada pelas formas de acesso, demanda transformações nos conteúdos, formatos, frequência e modos de consumo dos bens culturais, reconfigurando também a distribuição das produções regionais.
Se antes da quarentena o consumo remoto era, em maioria, das produções internacionais e nacionais, para compensar a distância geográfica; com o distanciamento físico, passamos a assistir cada vez mais os artistas locais também pelas telas.
No Sesc-Santos, um dos principais equipamentos culturais da Baixada, a circulação de espetáculos nacionais saiu temporariamente de cartaz e a unidade passou a priorizar a exibição de artistas locais em suas plataformas digitais. Não se trata de um fato isolado: atualmente é o Sesc-SPque concentra a difusão das apresentações de alcance nacional. As técnicas de programação da regional santista, Nadia Mangolini e Rani Bacil, informam que esta divisão expressa o desejo das gestões locais por se diferenciar entre si, valorizando os artistas vinculados ao território onde estão instaladas em suas pautas.
Elas contam ainda que, com exceção do serviço de alimentação, todas as demais áreas continuaram com atividades adaptadas para o ambiente virtual: o setor de esportes realiza lives com práticas corporais; as crianças do projeto Curumim assistem atividades lúdicas durante toda semana; a odontologia atende às emergências em plantões; o programa Mesa Brasil chegou mesmo a intensificar as doações de alimentos; enquanto o setor artístico realiza apresentações ao vivo, bate papo ou vídeos de repertórios já existentes ou inéditos, desenvolvidos especialmente para o formato digital.
Na música, o carro chefe passou a ser a Bússola Digital. O projeto, que teve apenas uma edição presencial, casou como uma luva ao novo contexto: shows intimistas, com pequenas formações, entremeadas por histórias da carreira do artista que vão sendo reveladas por um mediador.
Há muitas outras iniciativas sendo produzidas de forma independente a partir da Baixada que destacam a produção artística local nas redes, para citar algumas: festivais como o do Movimento ELA, que reuniu no mês passado mais de cinquenta artistas e produtoras da região em três dias de shows e rodas de conversa; e o Santos Jazz Festival, que começa nesta sexta (11); formações como as oficinas de audiovisual do Instituto Querô beneficiam alunos de escolas públicas da região; feiras online tais quais a do coletivo AfroTu promovem negócios na área do artesanato.
A audiência dos eventos por streaming é majoritariamente de moradores da região, embora haja pequena participação de espectadores de outros países, que vêm para conhecer ou se reconectar com a arte e os artistas daqui.
Interessante observar também que a participação do público das atividades online é flutuante, com um clique a plateia entra ou deixa uma apresentação; e como esta pode ser visualizada posteriormente, prolonga a sua repercussão.
Apesar dos movimentos de retomada que começam a despontar, Rani acredita que é provável que o formato de distribuição cultural permaneça híbrido ainda por algum tempo, inclusive por se tratar de um recurso para reduzir a concentração do público em um mesmo espaço.
Uma frase que tem sido muito reproduzida é que “o setor cultural foi o primeiro a parar e será o último a retornar” pós- pandemia. Considero que falta complexidade à afirmação. Não há dúvidas que a rotina das lives é muito inferior à das apresentações presenciais e seu formato flexibiliza a contratação de parte das equipes, comprometendo os rendimentos de toda categoria. Contudo, não podemos dizer que houve paralisação absoluta no setor. Tal formato conclama à revisão das formas de monetização destes eventos para distribuição de renda de forma mais equânime para toda cadeia de profissionais da arte e da cultura.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista