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Onde eu vou morar agora?

“As arquiteturas coletivas me fascinam desde que construí meu primeiro clubinho num terreno baldio, em Caraguatatuba, aos sete anos de idade”, conta Rodrigo Savazoni

Minha casa, o janelão de Brasília, nosso amor – Foto: Acervo pessoal

“Já é impossível pensar
o mundo sem a mediação
da casa”.
(Julia de Souza)

Os quadros nas paredes; os bibelôs nas prateleiras; as samambaias dependuradas no teto, diante da janela da sala; um vaso de begônias sedentas. A casa é um receptáculo de coisas e histórias: os armários, roupas e calçados; a porta do forno que já não fecha, a tampa da privada que rachou e precisa ser trocada; minha memória, véu sob a retina, atribui vida ao que seria mera matéria fria.

A primeira casa em que vivemos era pequenina, mas aconchegante. E nossa cama eram duas camas turcas que juntávamos para nos abraçarmos, nossas costas que lutassem através da madrugada com o vão que se formava entre os colchões. Era corriqueiro acordarmos doloridos, mas felizes, naquele apê de dois quartos na Bela Vista, em São Paulo, a três quadras da Avenida Paulista. Era minha república, na qual a abriguei porque ela ficara sem ter onde morar, depois de ter se desentendido com as garotas de sua república, por questões financeiras, se bem me lembro.

Desde aquela época, quando o século 20 não tinha chegado ao fim, até cerca de 200 dias atrás, compartilhamos muitas outras casas. Mas só agora percebo que todas foram a mesma, porque éramos nós seus habitantes. A casa de nosso amor, em parte real, em parte metafórica, um abrigo indevassável, protegido e acolhedor. Quente no inverno. Refrescante no calor. Tinha os discos que gosto, os cheiros mais aprazíveis, a companhia mais agradável, a segurança de um cofre, a beleza de um vitral multicolorido, e me passava a sensação de que duraria para sempre.

Mas ela foi implodida, dando lugar a um terreno vazio, perdido em meio ao deserto na zona mais erma de um continente inóspito. Ficou a pergunta: onde eu vou morar agora?

         * * *

Em julho do ano passado, antes de seguir viagem para a Chapada dos Veadeiros com seu irmão, cunhada e sobrinho, Lia levou Francisco para conhecer a quadra de Brasília em que moramos. Reapresentou a ele, que obviamente não se lembrava de nada – voltamos para São Paulo quando ele tinha pouco mais de um ano –, as janelas de onde avistávamos as árvores frondosas da 403 Norte.

Esse foi o primeiro apartamento que alugamos como um casal formalmente constituído. A sala foi decorada de laranja e verde, com um tapete de fios leves que pedimos para ser tecido de forma que pudesse combinar com a rede que havíamos comprado do mesmo tecelão.

Em um vídeo antigo, Lia, Júlia e Francisco, recém-nascido, estão naquela sala, sentados no almofadão, que também foi revestido com uma capa laranja, o sol em seus rostos preguiçosos, invadindo os janelões. As imagens me fazem recordar o quanto fomos felizes ali, até mesmo na época das chuvas que encerram a estação seca e trazem consigo as cigarras, cujos zumbidos, tão altos, impedem que escutemos nossos próprios pensamentos.

O período de Brasília durou quase cinco anos, o que em outra métrica, mais afetiva, calculo como todo o primeiro governo Lula e onze meses do segundo. Uma época linda, de esperança e comunhão, em torno da ideia de que o Brasil poderia ser mais justo.

Jovens pioneiros, nós dois assumimos posições de destaque na empresa pública de comunicação e contratamos inúmeros amigos para trabalhar conosco. Alguns companheiros e companheiras seguiram rotas paralelas à nossa e foram ao cerrado para trabalhar em outros órgãos do governo, como o Ministério da Justiça, o Ministério das Cidades e o Ministério da Cultura. Nos bares e nas festas, conhecemos outra leva de gente boa. E essa malta acabou por conformar uma comunidade baseada na afinidade de ideais, geograficamente dispersa sobretudo nos predinhos da Asa Norte. Entre nós, partilhávamos projetos e o cotidiano, e disso tenho saudade.

Creio que por volta de 2006 uma conversa se tornou recorrente em nossos encontros: como construir um projeto coletivo de moradia que confrontasse o modelo burguês e careta da sociedade contemporânea? Afinal, éramos ou não éramos revolucionários em busca de outros arranjos de existência? Essas discussões resultaram em experimentos estético-políticos, como uma festa de ocupação de rua cujas bebidas passaram a ser distribuídas aos participantes assim que os custos operacionais foram cobertos. Estávamos atrás do equilíbrio perfeito entre necessidades e oportunidades.

As arquiteturas coletivas me fascinam desde que construí meu primeiro clubinho num terreno baldio, em Caraguatatuba, aos sete anos de idade. Na maior parte das vezes, porém, eu participava das tertúlias como um diletante, porque não me via em condições de mudar meus hábitos. Afinal, nós, como casal, havíamos nos adaptado bem ao modelo familiar fordista, com nosso teto, filhos e carro – só nos faltava um bichinho de estimação. Eu sentia que era bom estarmos juntos, dedicados exclusivamente um ao outro e a nossas crianças. Um modelo alternativo seria tão bom?

Alcione, se não me engano, cansada do palavrório, inventou o projeto Casebrinho, que consistia em comprar um terreno de baixo custo, em alguma cidade próxima a Brasília, e nele construir casas individuais e espaços coletivos para partilha do cotidiano. Nós cogitamos participar do empreendimento, mas demos para trás, com a justificativa de que não queríamos seguir vivendo por tanto tempo em um lugar longe do mar. Em 2008, regressamos para São Paulo, para um amplo apartamento no bairro das Pompeia, com área de lazer no térreo. Quase um feudo. Doces contradições. 

         * * *

No dia 11 de maio deste ano, chegou em minha caixa de entrada um e-mail de uma amada amiga recuperando uma antiga conversa, de junho de 2017, em que nos provocava sobre a possibilidade de um futuro mais coletivo. Na mensagem, ela reclama da pandemia, que nos impediu de realizar um ritual de despedida como Lia merecia e elabora uma frase que tem me perseguido:

“E sinto por não termos tido esses espaços pra nos cuidar e cuidar da Lilica”.

No e-mail de 2017, essa amiga compartilhou o arquivo do livro de Subonfu Somé, o Espírito da Intimidade, com ensinamentos da cultura Dagara colhidos na comunidade de Burkina Faso, na África, onde nasceu. Subonfu foi uma grande mestra destinada a difundir pelo mundo o conhecimento de seu povo e havia morrido em janeiro daquele ano, na mesma vila que veio ao mundo e para a qual regressou depois de longo período vivendo entre a Europa e os Estados Unidos.

O Espírito da Intimidade deve ser lido com o coração, porque propõe uma outra relação com a vida em grupo, muito diferente dessa que professamos, baseada na alienação e no afastamento. Da primeira vez que o li, anotei vários trechos inspiradores, aos quais retorno muitas vezes, como este:

“Para criar uma comunidade que funcione, é preciso observar cuidadosamente alguns dos seus fundamentos: espírito, crianças, anciãos, responsabilidade, generosidade, confiança, ancestrais e ritual. Esses elementos formam a base de uma comunidade. Não é preciso começar com muita gente. Preferiria um círculo de poucos bons amigos a me perder em uma multidão de pessoas as quais não ligam umas para as outras”.

Éramos sete os participantes daquela thread interrompida, poucos e bons amigos, que ligávamos uns para os outros. Entre nós, fomos capazes de sonhar uma aldeia, com horta, biblioteca, espaços para o silêncio e para a balburdia, com respiros para trocas apenas entre mulheres ou entre homens, num contato permanente e simétrico com a natureza, mas incapazes de realizá-la.

Por que não a construímos? Por medo? Hábito?

Em 2017, meu diário e o de Lia atestam, tínhamos convicção de que a vida seria muito mais agradável e completa se a coletivizássemos. Embora convivendo com dores intensas, não fazíamos ideia de que o câncer já crescia dentro dela. Ou seja, a doença não pode ser usada para explicar nossa covardia nem a de nossos amigos. Por razões inexpugnáveis, permanecemos cada qual no seu canto, emparedados em arranjos fordistas, resignados ou inconformados diante da pouca coragem.

A frase de minha amiga me persegue porque eu também sinto muito que não tenhamos estado mais juntos. Em comunidade, Lia teria estado cercada de ainda mais amor e cuidado, e eu acolhido na difícil tarefa de cuidador. O que me faz lembrar de Subonfu, mais uma vez:

“Nosso medo da exposição, em uma cultura em que todo mundo veste uma máscara, pode prejudicar muito nossa capacidade de pedir ajuda. É por isso que é tão crucial ter um círculo de amigos nos quais se confia, que possa dar a sensação de pertencer a uma comunidade”.

         * * *

Enquanto escrevo, vejo pela janela o sol bater nas samambaias do meu quintal. Eu não deveria tê-las pendurado num muro tão diretamente expostas à luz, pois são espécies que preferem sombra e umidade. Percebo que uma delas está ficando com as folhas todas amareladas. Ainda estou aprendendo a cuidar das plantas. Ao menos, consegui mantê-las vivas depois da mudança. No nosso belo apartamento da Ponta da Praia, tinham abrigo seguro e uma cuidadora atenta. Por aqui, estão sendo submetidas a um experimento de sobrevivência, mas não as sinto desesperadas. 

A Pitangueira, a Eugeninha, deu seus primeiros frutos esta semana, três pitanguinhas que já estão bem vermelhinhas. Uma das orquídeas, que até achei estivesse morta, está com o galho cheio de brotos. Em poucos dias deve estar toda florida.

Entre os Dagara, Subonfu explica, parte do ritual de morte consiste em limpar a casa do viúvo para que ele possa regressar a ela sem ter de lidar sozinho com os vestígios da companheira que morreu. Talvez esteja chegando a hora de esvaziar as caixas com as roupas de Lia, que seguem ocupando parte do armário do meu quarto. Já não sinto apego. Por outro lado, no íntimo, pode ser que eu ainda esteja esperando que ela volte para reaver o que é seu. E se ela voltasse, eu a receberia nesta casa em que ela nunca viveu, neste Gonzaga que tão bem me acolheu, e a faria sentir-se em seu lar. Será que estou pronto para esvaziá-las? Será que sou eu quem deve fazer isso?

Eu queria que ela voltasse para eu lhe mostrar que na sala pendurei em paredes opostas os quadros do Demóstenes Vargas que compramos em Tiradentes na loja do Celso: uma árvore da vida e uma ciranda. No dia de seu aniversário de 41 anos, fiz uma fala correlacionando esses dois quadros, que não foram adquiridos à toa. Eles são metáforas de nossas buscas, como indivíduos e como casal. Embora não tenhamos conseguido morar numa comunidade, sempre estivemos metidos em projetos de construção de coletividades, como associações de ativismo, coletivos de comunicação, círculos de mulheres, casas de criação e laboratórios de invenção. Ou seja, dançando cirandas e plantando árvores de vida, cujos frutos somos nós, seres que trocam entre si. 

Eu me sinto muito bem quando estou cercado de muitas pessoas. Lia, por sua vez, tinha certas dificuldades em aceitar a balburdia das coletividades. Seu apreço pelo silêncio e por sua própria companhia funcionavam como escudo para meus rompantes multitudinários. Estou faz meses morando somente com meus filhos adolescentes, cada qual com seu quarto, e a frase que mais ouço é: “por favor, feche a porta!”. Resta-me a solidão do quintal, as redes sociais, a visita de um ou outro amigo. Tenho certeza de que não precisava ser assim. 

         * * *

Naquela troca de mensagens de 2017, Lia dizia que queria tempo de vida e uma terra que tivesse vista pro mar, onde montaríamos nossa comunidade com:

“- uma cozinha coletiva completa com fogão de ilha, forno a lenha, churrasqueira, integrada à área externa, para atender ao dia a dia e as festas todas.

– uma mesa enorme para refeições deliciosas com opções internas e ar livre. Café da manhã em dia do sol sempre fora, debaixo das árvores do quintal.

– uma adega subterrânea com vinhos do mundo inteiro.

– ah, o quintal. Com um jardim lindo, com ervas, árvores frutíferas e muitas flores. E com árvores boas de subir. E com esculturas lindas. Uma fonte.

– uma casa na árvore para crianças de todas as idades.

– um observatório/planetário.

– um ateliê de artes.

– uma garagem para as gambiarras-tech.

– espaços para o silêncio.

– uma sala de meditação e outras atividades.

– paredes para muitas artes que vamos produzir e trazer para serem expostas pela casa.

– um cinema com programações produzidas por todos, inclusive as crianças.

– uma kombi na garagem (para nossas excursões)”.

Leio essa lista e percebo nós dois, nossos desejos partilhados.

Eu estaria absolutamente contemplado se pudesse morar em um lugar com todos esses recursos, ainda mais com ela a meu lado, e isso se tornou impossível.

Reunir pessoas queridas para formar uma comunidade vibrante, capaz de acolher o melhor de cada um de seus membros, segue me parecendo um projeto sensacional.

Quando pergunto onde vou morar agora, sinto vontade de gritar: numa comuna, cercado de meus amores, em meio à natureza, reverente a meus ancestrais e ao espírito criador. E talvez eu coloque energia para fazer isso acontecer. Mas não sem levar em conta o que talvez tenha sido a principal aprendizagem destes últimos solitários meses:

…só será possível habitar plenamente qualquer nova casa se eu estiver presente em mim.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista

Jornalista, escritor e produtor cultural. Um dos fundadores e atualmente diretor-executivo do Instituto Procomum. Cursa doutorado em Ciências Humanas e Sociais na UFABC e tem alguns livros publicados no Brasil e no exterior. Vive em Santos, com seus dois filhos.
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