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O vento das mutações

Rodrigo Savazoni, em novo artigo, questiona: “Quanto saber reside em não saber? Quanta revelação é possível encontrar naquilo que nos escapa? Por que temer o mistério, se só ele existe?”

A imagem é a reprodução de um hexagrama do I Ching

“Quem mesmo na morte não perece, esse vive”. (do Tao-te King)

Francisco nasceu naquela hora em que a noite abraça o dia. A bolsa de Lia rompeu pela manhã e esperamos calmamente para ir ao hospital, seguindo as orientações da doula e da médica, Rita e Carla, a dupla que também havia feito o parto de Júlia. Tudo transcorreu com absoluta normalidade, embora houvesse alguma preocupação delas com o fato de a gestação já durar mais de 40 semanas. A nós, não preocupava, porque com Júlia fora igual. Doze horas depois da bolsa rota, ao entardecer, eu segurava pela primeira vez meu menino nas mãos, um bebê saudável, enorme e lindo.

Pouco tempo antes do nascimento, não sei se minutos ou horas, choveu em Brasília uma chuva linda. Eu, comovido, escrevi em meu caderno um poema:

Origem II

A água escorre fria pela parede turva. É dia,
e o céu branco espia pela fresta da cortina.

Um rasgo e a cabeça e a boca e o braço,
o sangue escorre espesso pela minha vagina.
A flor negra expele um corpo: o viço. O novo!

A água escorre fria pela parede nua. É dia,
e o céu de Brasília se entrega à chuva.

O potro no peito se aquece.
A égua silencia.
E o grito da alma anuncia a vida. A vida!

Ezra Pound dizia que a poesia prescinde da retórica. Seguir seus ensinamentos, livrar-me dessa minha estúpida retórica, é meu desafio, porque quero dizer as coisas com força e verdade. Meu poema carrega os defeitos de uma escrita por vezes rocambolesca. No entanto, ao lê-lo depois de anos, sabendo que Lia não está mais entre nós, encontro nele a expressão de um sentimento profundo de conexão com a existência. Tudo, de uma maneira que não sei explicar, faz sentido.

Em meu diário, de capa verde, registrei aquele momento:

“Hoje nasceu Francisco. Meu Paco. Siga, filho, a luz que principia, que invade seus olhos quase cegos ainda acostumados com a escuridão do útero, esse invólucro quente e úmido que o guardou por noites e dias, meses de espera e de alegria”.

Sexta-feira passada aquele bebezão completou 14 anos. Ganhou inúmeros presentes e carinho de familiares e amigos. Pela tarde, fomos comprar uma churrasqueira para poder preparar sua festa, na companhia do querido amigo Stéfanis Caiaffo. Feita a compra, decidimos ir tomar um milk shake no glorioso CPE (Centro de Paquera do Embaré). Sorvete, Nutella e batata-frita, não conheço combinação de que Chico goste mais.

O pôr do sol estava belíssimo. Decidimos regressar para casa caminhando pela areia, à beira-mar. Recordei meu filho que sua mãe nos havia dito que estaria conosco sempre que sentíssemos a brisa do mar em nossa pele. E naquele momento único e nosso, recebemos sua presença, o vento a nos acariciar. Nos abraçamos e choramos a nossa saudade, trocamos juras de amor, com a certeza de que nada é mais importante do que a vida que pulsa dentro de nós. A vida!

II

Cerca de dois meses antes de Lia morrer eu fui a um terreiro de Umbanda em Praia Grande. Estava sentindo minhas energias completamente drenadas e precisava de algum apoio espiritual. Esse terreiro é frequentado por um grande amigo, figura absolutamente singular, um hacker médium que muito me ensina sobre o viver e o morrer. Ele já havia me convidado outras vezes para conhecer a casa, mas por uma série de razões nunca havia conseguido ir. Naquela ocasião, fui, acompanhado de minha amiga Bete Nagô, que também buscava limpeza e proteção.

Cheguei ao modesto salão improvisado no quintal daquela casa de encruzilhada numa noite de gira de baianos. Sentei-me numa cadeira ao fundo e fiquei admirando o altar sincrético, repleto de ídolos dessa religiosidade absolutamente brasileira. Os tambores que acompanham a batida do coração, os cânticos que evocam a tradição, o sagrado que se materializa em diferentes corpos, cavalos que cruzam mundos, tudo me trouxe paz. Filho de Oxóssi, mentalizei meu pai caçador e pedi ajuda, enquanto esperava pelo atendimento individual, uma conversa que iluminasse meu caminho.

Fui o último a ser atendido. Muitas horas de espera. O Baiano do Pai de Santo queria conversar comigo, porque ficara sabendo da minha dor. Em nosso papo, me explicou que a casa era também adepta da mesa branca, e recordei de minhas incursões infantis para tomar passes em centros espíritas, conduzido por meu padrinho, e das conversas com meu avô, pai de meu pai, fundador da Fraternidade Cristã de Jundiaí. Quando menino, eu tinha até uma edição própria do Evangelho de Kardec, mas há muito havia me desconectado dessas energias.

Segurando uma bíblia nas mãos, o Pai de Santo me perguntou:

– Sabe o que é isso?
– Um livro, um livro sagrado?
– Isso aqui é conforto.

Lemos uma oração juntos, eu e a entidade, e ele me recomendou que não deixasse de acessar as palavras que acolhem nossas dores, que ensinam a suportar os desafios terrenos.

Com Lia, em momentos singulares que precederam sua travessia, rezei, mesmo sem saber rezar. O Pai Nosso e a Ave Maria que aprendemos quando criança foram entoados muitas vezes, antecedendo uma oração bonita do ex-monge indiano Satish Kumar que eu mesmo traduzi.

Oração para a paz
adaptada de um mantra em sânscrito.

Guie-me da morte para a vida,
da falsidade para a verdade.
Guie-me do desespero para a esperança,
do medo para a crença.
Guie-me do ódio para o amor,
da guerra para a paz.
Deixe a paz preencher nossos corações,
nosso mundo, nosso universo.
A paz,
A paz,
A paz.

Antes eu rezava escondido. Agora, não mais. Rezo em momentos de aflição, mas também nos de alegria, para expressar minha gratidão por tudo que recebi até aqui, sobretudo a possibilidade de viver um amor tão especial.

Na sexta e no sábado da semana passada, eu rezei, por ela, por mim, por nossos filhos.

A morte para as religiosidades afro-brasileiras, como explica Luiz Simas, não é o contrário da vida. Nos terreiros, convivem encarnados e desencarnados, habitando corpos que são, de alguma forma, provisórios. O contrário da vida é o desencanto. Quando perdermos a capacidade de nos encantarmos, deixamos a vida se esvair pelas frestas dos dedos. Para impedir que isso ocorra, é preciso aceitar a magia e a presença, cultivar momentos de beleza e entrega, sem medo.

III

Por que não ritualizar as atividades cotidianas? O que nos impede? Para superar esse cenário tão aparentemente desolador que nos circunda, não seria o caso de treinarmos nosso olhar para perceber a beleza de tudo que é efêmero e essencial?

Nos cadernos de Lia, minha herança, encontrei anotações por ela feitas durante um retiro para estudar taoismo, um retiro que ela mesma organizou no sítio de seus pais quando já estava bastante debilitada pelo câncer. Lendo-as, recordei-me de nossas conversas, seu fascínio pelos ensinamentos milenares dessas tradições orientais tão valiosas. Em meus momentos de silêncio, que têm sido muitos, aproximo-me, ainda titubeante, dos textos sagrados, como o Tao-te King e o I Ching. Ao fazer esse movimento, sinto que me reaproximo dela, e construo um novo caminho para mim.

Como não se sentir fascinado pelo canto XXXIII?

“Quem conhece os outros é inteligente
Quem conhece a si mesmo é sábio.
Quem vence os outros é forte.
Quem vence a si mesmo é poderoso.
Quem faz valer tem força de vontade.
Quem é autossuficiente é rico.
Quem não perde o seu lugar é estável.
Quem mesmo na morte não perece, esse vive”.

É demasiado estranho pensar que eu e ela jamais voltaremos a ter conversas como as que relatei anteriormente. Por outro lado, as ressonâncias e trocas persistem e em mim se aprofundam.

Na busca por um misticismo consciente, que despertou anos atrás, mas se acentuou nos últimos meses, me pego recuperando trechos de diálogos cujos significados antes me escapavam. Por exemplo: a opção pelo “não-lutar”, que para os taoistas é uma forma de renovar a força, “porque não consome nenhuma energia com coisas estranhas e perturbadoras”.

Lia recusou as metáforas bélicas. Escolheu dançar com sua doença, rebolar no tempo suspenso, fiar entendimentos, e nisso residia sua profunda sapiência. Como escreve Gustavo Alberto Corrêa Pinto no prefácio de sua tradução do I Ching, “Só sabiamente caminhando se pode chegar à sabedoria. Ela é seu próprio requisito. É a sabedoria que nos conduz à sabedoria. Realizá-la é possível tão somente porque já a possuímos, desde todo sempre, em nós mesmos”.

O livro das mutações como o I Ching também é conhecido consiste em um antigo texto sagrado utilizado ao longo dos séculos como oráculo. Se estrutura a partir de sessenta e quatro hexagramas e inúmeros comentários a respeito das imagens. Sobreviveu a perseguições, às traduções do oriente para o ocidente, a versões que o adulteraram, e sua capacidade divinatória e mágica segue fazendo a cabeça de esotéricos de toda sorte. Sou profundamente leigo nos conhecimentos que o livro desvela, mas me interesso por seus mistérios. O que me fascina é justamente aquilo que ainda sou incapaz de ler. Isso não ocorre só com o I Ching, mas também com o Tarot e mesmo com o Zodíaco e a astrologia.

Quanto saber reside em não saber? Quanta revelação é possível encontrar naquilo que nos escapa? Por que temer o mistério, se só ele existe?

A mutação é a regra. A constante impermanente.

Penso nisso e dou de cara com Borges, numa esquina de Elogio da Sombra, na qual homenageia Heráclito. “O rio me arrebata e sou esse rio. De matéria perecível fui feito, de misterioso tempo. Talvez o manancial esteja em mim. Talvez de minha sombra, fatais e ilusórios, surjam os dias”.

IV

A festinha de sábado correu conforme o previsto. Um churrasquinho no quintal, para uma pequena turma de adolescentes, procurando respeitar as regras sociais da pandemia. Chico deu-me parabéns pela organização. Teria sido impossível realizar esse singelo ritual sem contar com a ajuda de amigos e familiares. Minha forma de fazer as coisas acontecerem sempre foi essa: construir comunidades, aproximar pessoas, tecer relações.

Francisco, meu filho, tem esse nome por algumas razões. Uma delas, uma homenagem a Francisco Urondo, poeta argentino assassinado durante a ditadura militar daquele país. Urondo era conhecido por Paco. Queria chamar meu filho de Paco, porque adoro esse apelido, mas desde que o vimos pela primeira vez percebemos que tinha cara de Chico. E assim ficou: nosso Chiquinho.

Seu nome também é uma homenagem aos seus ancestrais franciscos, na família de Lia e na minha. E hoje gosto de pensar que é também uma homenagem a São Francisco de Assis. Um nome que é expressão da simplicidade e da bondade, e me ajuda a planar pelo vento das mutações.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista

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