“Eu sou o fim, quero começar tudo de novo, voltar ao ovo e ser um pássaro”
(Marco Poeta)
No início da década de 80, a canção de Renato Terra, intitulada “Lá em Mauá”, que falava de montanhas, pés na terra, cachoeiras e vida no coração, inundou as rádios. A letra chamou a atenção de todos que buscavam paz e natureza.
O compositor se referia, principalmente, a Visconde de Mauá, território localizado na Serra da Mantiqueira, nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, que ocupa áreas nos municípios de Resende, Itatiaia e Bocaina de Minas. Situa-se a 1.200m de altitude.
Há três vilas: Maromba, Maringá e Visconde de Mauá, que dá nome a todo o território. Trata-se de uma unidade de conservação, área de proteção ambiental, com muitas cachoeiras e trilhas. O Rio Preto corta todo o território, é um dos marcos divisores entre Rio de Janeiro e Minas Gerais. O principal acesso, até 2012, era uma estrada não pavimentada de cerca de 34km que iniciava no município de Resende/RJ.
Na década de 70, esse território foi descoberto por jovens que amavam andar de sandálias, mochilas nas costas, caminhar, acampar e cantar canções de paz e de contestação da sociedade que propunha relações fundamentadas somente nas trocas intermediadas pelo dinheiro.
Eram chamados de hippies brasileiros, que com os seus cabelos grandes viviam, em sua maioria, da produção e comercialização de artesanato, da música, da produção de arte de forma geral. Na vila de Maromba, se reuniam à noite, acendiam uma fogueira e cantavam em celebração à paz, à vida.
Na década de 80, o território começou a ser ocupado com maior intensidade por pousadas, restaurantes e bistrôs. Havia turistas que se dispunham a enfrentar a estrada de chão para viver as belezas do lugar. A partir de 2012, com a pavimentação da estrada de acesso, houve um aumento no número de casas de segunda residência, pousadas, restaurantes e bistrôs e, também, de turistas.
Com a emergência da pandemia, ocorreu um aumento expressivo do número de turistas que decidiram ir para um lugar onde há, ainda, a forte presença de matas, ar com boa qualidade e água. Parece que pensavam que lá, em Mauá, o coronavírus não os alcançaria, sendo a fuga perfeita do confinamento imposto pelo afastamento social.
Afirma uma comerciante de doces e pastas de truta: “Os comerciantes locais ganharam dinheiro durante o afastamento social como nunca ocorreu nos últimos dez anos. As pousadas estavam lotadas. Tínhamos que orientá-los a usar máscara a todo o momento”.
A valorização da natureza pela classe média urbana ocorreu em um momento de desespero, pressionada pelo medo de morrer por implicações da Covid-19 ou por solidão. A vida no meio urbano não tem natureza vasta. Era uma necessidade de reconciliação.
Esse fenômeno veio acompanhado da explosão da construção civil. Pousadas e casas foram e estão sendo construídas em grande velocidade. Um antigo morador proprietário de uma pequena pousada constata que “os caminhões de transporte de materiais de construção não param, constroem inclusive onde não pode. Antes, a fiscalização ambiental tinha que avaliar se era possível ou não construir de acordo com as leis. Agora, com esse homem na Presidência da República dando mau exemplo, as pessoas acham que podem tudo e constroem onde jamais construiriam. Os fiscais têm medo de agir”.
Essa dinâmica acarreta consequências desastrosas para um lugar como Visconde de Mauá: novos pontos de lançamento de esgoto, aumento do lixo no local, maior captação de água, proliferação de motos com as suas conhecidas buzinas e roncos de motor, construções que agridem e, consequentemente, descaracterizam a paisagem. A estrada que liga a vila de Maromba à cachoeira do Escorrega apresenta trechos que se assemelham a ruas urbanas devido às construções, algumas são enormes.
A convergência de eventos como a construção da estrada, a emergência da Covid-19 e a queda da qualidade de vida nas grandes cidades, levou para o território um contingente de pessoas que busca o Horizonte Perdido, o Shangri-La, mas que não se ocupa de construí-lo, querem apenas usufruir.
O tiro já sai pela culatra para aqueles que sonhavam em ganhar muito dinheiro em um local paradisíaco. O perfil dos turistas também mudou, considerando que até 2012, antes da estrada, a preferência era por estadias de vários dias. Agora, o turismo de consumo se expandiu e raros são aqueles que ficam no local por um tempo maior. Há uma preferência por apenas um pernoite, comumente de sábado para domingo. As reservas feitas pelo Airbnb também dificultam a vida de quem trabalha no local e deseja alugar uma casa. Enfim, como afirma o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, a modernidade é líquida, fugaz.
Confesso que tenho saudades das fogueiras e canções cantadas pelos nossos hippies da vila de Maromba. É com aperto no coração que penso e falo nas figuras emblemáticas do lugar que já partiram para outro plano, como Marco Poeta, com as suas pirogravuras e poemas, e Jorge Viage (é assim que se escreve, ele dizia), com a sua guitarra e violão. Será que suportaram ver as rodas de jovens músicos, verdadeiras celebrações, serem reprimidas sob o argumento de incomodarem os turistas que buscam dois dias de paz e de alimentação farta nas alamedas gourmet das vilas Maringá/RJ e Maringá/MG, separadas pelo Rio Preto?
Aliás, esse lindo rio, apesar das estações de tratamento de esgoto implantadas como exigência devido à construção da estrada, segundo os moradores, recebe volumosas cargas de matéria orgânica produzidas, principalmente, pelos hóspedes de pousadas. No Poção de Sete Metros da vila de Maromba, local de mergulho e banho no Rio Preto, notei a presença de óleo. Qual a origem? Recomenda-se que banhos devem ser praticados somente nas cachoeiras, a montante do rio.
Retornando às celebrações musicais: havia uma convergência de sonhos, canções, juventude, natureza e poesia; havia um coletivo fundamentado em valores de paz, amor e reciprocidade. Agora, prevalecem os interesses do segmento que movimenta algum dinheiro e contribui para uma transformação negativa do território Visconde de Mauá.
Afinal, pensam os seres humanos sensíveis somente aos valores do mundo mercantil: arte, poesia, alegria e vida para quê? Fala-se que, atualmente, a vila de Maromba é uma zona morta, pois os seus jovens habitantes desistiram ou foram expulsos. No local ainda resiste o Morrison Rock Bar, que oferta excelente comida caseira e petiscos. No entanto, o proprietário é proibido de gerar trabalho para os músicos locais, de proporcionar música ao vivo aos seus clientes.
Eu não sou apegado ao passado, daqueles que acham que o melhor da vida já foi vivido. Olho para o passado de forma crítica, comparo com o presente para entender as transformações que ocorreram e tirar ensinamentos. Visconde de Mauá parece ser uma oportunidade perdida de se construir um território com regras definidas no conselho gestor da unidade de conservação que proporcionassem efetivamente a sustentabilidade. No entanto, este termo parece ser apenas um conceito ignorado e jamais operacionalizado no território.
O principal problema não é a estrada construída ou a pandemia, mas a falta de gestão responsável que considere as possibilidades de geração de renda, mas sobretudo o meio ambiente, com educação ambiental para todos, a limitação de construções e controle do número de pessoas que devem acessar o território. Caso contrário, as gerações futuras não conhecerão Visconde de Mauá como conhecemos.
É necessária a construção de uma economia que tenha solidariedade em forma de reciprocidade entre os seres humanos e destes com o meio ambiente. Shangri-La pode ser construído se assim quisermos, mas jamais estará pronto para usufruirmos de forma irresponsável.
O agravamento da situação é tão acentuado que, agora, segundo a percepção de moradores, o volume de água das nascentes, cachoeiras e, consequentemente, do Rio Preto diminui. Esse fenômeno estaria vinculado à dizimação da Amazônia e afeta toda a região Sudeste. O meio ambiente é um sistema integrado. Aquilo que parecia ser inesgotável, a água, recebe esgoto diretamente e se faz menos presente.
Apesar de todos esses problemas, continuarei a visitar as vilas de Maromba, Maringá e Visconde de Mauá, a conversar com os moradores, a dar opiniões. Enquanto ouvir o som das águas das cachoeiras, mesmo que consciente da sua redução, estarei conectado com o sagrado desse território que conheci na minha juventude.
Para mim, viajar é sobretudo compreender como outras pessoas vivem, aprender, refletir e debater a realidade.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.