No século XIX socialistas e anarquistas desenvolveram experiências baseadas na autogestão, com o objetivo de construir uma economia sem exploração, sem patrões. O evento mais importante foi a Comuna de Paris, que durou apenas 72 dias até ser massacrada pelas forças conservadoras.
Foram realizados, também pelos trabalhadores, projetos que não contemplavam, a princípio, revoluções, mas representavam inserções socialistas no seio do capitalismo. Não foi seguido o procedimento clássico traçado pelos anarquistas com a implementação da revolução e imediata dissolução do Estado com a emergência de uma nova sociedade, autogestionária, sem classes sociais. Não foram seguidas, também, as etapas estabelecidas pelos comunistas, de chegada ao poder por meio da revolução e ocupação do Estado para colocá-lo a serviço da maioria em um processo de transição, chamado de socialismo, até a sua dissolução, quando não houvesse mais classes sociais e pudesse experienciar uma sociedade autogestionária.
As referências comumente citadas são aquelas construídas por Robert Owen: New Lanark na Grã-Bretanha e New Harmony nos EUA, assim como a Sociedade dos Pioneiros Equitativos de Rochdale, também na Grã-Bretanha e os Kibutzim de Israel, que se consolidaram no século XX.
No entanto, a Colônia Anarquista Cecília, implantada por imigrantes anarquistas em Palmeira, estado do Paraná, que existiu entre 1890 e 1894, também foi uma importante experiência que possibilita tirar ensinamentos, principalmente, para os militantes do movimento de economia solidária (Ecosol), que também se propõem a construir inserções autogestionárias no interior do sistema capitalista.
A Colônia Anarquista Cecília foi tema de uma série da TV Bandeirantes exibida em 1989, assim como de documentário da TV Paraná e algumas publicações. Uma delas bem conhecida, o romance “Arnarquistas, Graças a Deus”, de Zélia Gattai, que cita a passagem do seu avô pela Colônia. No entanto, considero o livro “Um Amor Anarquista”, do escritor e professor Miguel Sanches Neto, a melhor obra sobre o tema, que é a referência para este texto.
A Colônia Anarquista Cecília foi fundada pelo agrônomo e veterinário Geovanni Rossi, italiano anarquista, em 200 hectares de terras disponibilizadas pela monarquia. Era uma política pública, a cessão de terras brasileiras a europeus com o objetivo de povoar o Brasil “com gente trabalhadora, branca”, fato que pode ser verificado em “O Povo Brasileiro”, livro de Darcy Ribeiro.
A partir dessa oportunidade, Giovanni Rossi chegou à Palmeira com mais cinco companheiros e fundou a Colônia. Após a divulgação na Itália dessa experiência pelo próprio Rossi, outros anarquistas italianos que tinham dificuldades financeiras e queriam viver a liberdade plena, sem patrões ou governos, migraram para o Brasil e a Colônia chegou a ter 250 pessoas.
A análise dos fatores determinantes para que a Colônia tenha existido por apenas quatro anos é tão importante quanto a abordagem dos fatores responsáveis pelo sucesso de qualquer experiência. A simetria na análise para o fracasso ou sucesso possibilita compreender melhor os fenômenos sociais que agem nas organizações.
A pobreza foi um fator que levou muitas famílias a abandonarem a Colônia, antes mesmo de sua consolidação. A fome minou a resistência. Não havia alimentos para todos. O aumento do número de habitantes sem que houvesse condições materiais adequadas para recebê-los foi um problema, uma vez que a necessidade de se alimentar é imediata, enquanto o plantio e a colheita seguem o ciclo de cada cultura. Os integrantes da Colônia Anarquista Cecília sequer tinham ferramentas adequadas para praticarem a agricultura.
Aliado a esse fato, havia alguns integrantes que não se dedicavam ao trabalho como outros. Esse comportamento foi motivo de discórdia, pois Rossi, liderança intelectual, tinha a interpretação de que a liberdade deveria ser exercida de acordo com o desejo de cada um e que a consciência da necessidade de se dedicar ao trabalho coletivo seria assimilada naturalmente por todos.
Outro fator determinante para o fim dessa experiência social foi o oportunismo. Pessoas que não tinham a ideologia anarquista se inseriram na Colônia, não trabalhavam como a maioria e estimularam rivalidades. Houve, inclusive, roubo de dinheiro, pois todos poderiam acessar o local onde era guardado. Afirmavam que essa prática era de transparência.
A imposição do amor livre como forma de dissipar a família por entenderem que esta é uma unidade da sociedade fundamentada no patrimonialismo, conservadorismo e egoísmo, foi um fator determinante de conflitos que motivaram a saída de pessoas da Colônia. Havia um número de homens muito superior ao de mulheres, o que provocava carência de afeto, principalmente nos jovens. Segundo Rossi, esse problema poderia ser minimizado se as mulheres casadas e seus parceiros se dispusessem a superar sentimentos de posse e o ciúme. A partir de então, os filhos seriam da Colônia. Apenas duas mulheres adotaram o amor livre, fato que causou conflitos familiares e ridicularização de parceiros que sentiam vergonha de compartilhar o amor de suas companheiras.
A partir dessas considerações, destaco alguns aspectos que podem gerar ensinamentos para os integrantes do movimento de EcoSol. O primeiro foi a falta de renda, a pobreza vivida pelos integrantes da Colônia, que são situações experienciadas na atualidade, por muitos integrantes dos empreendimentos autogestionários.
A EcoSol não pode limitar a sua organização à realização de feiras que não geram renda suficiente para manter uma família. Muitas vezes, esses equipamentos de comercialização são integrados por empreendimentos de gestão individual ou familiar que estão inseridos na economia popular, mas não têm vínculo com o trabalho associado, a não ser para debater as regras de funcionamento das feiras.
Há necessidade de se elaborar e operacionalizar ações estruturais para a construção de uma sociedade que se organize sob os princípios e valores da EcoSol. Isso implica que a formação de militantes do movimento e de integrantes dos empreendimentos econômicos solidários seja constante, permanente. Trata-se de uma missão para os fóruns de Ecosol, que devem mobilizar os recursos humanos e materiais disponíveis.
Além disso, projetos similares ao Bolsa Família, infelizmente extinto pelo governo Bolsonaro, poderiam ser vinculados a bancos comunitários. Os recursos aportados pelos governos podem e devem promover a organização para a EcoSol e a dinamização da economia local.
A pesquisa científica deve estar voltada para gerar informações que estejam de acordo com as necessidades dos empreendimentos econômicos solidários e não do capital. Considerando que se trata da construção de inserções autogestionárias no seio do capitalismo, é necessário que se dispute os recursos públicos para financiamento e custeio dos empreendimentos, assim como para compra de produtos e aquisição de serviços que são disponibilizados à sociedade. Além disso, necessita-se de uma reforma tributária que possibilite a viabilização do trabalho associado, pois os impostos que incidem sobre as cooperativas populares são escorchantes.
O Estado representa o princípio da redistribuição na economia. Atualmente, o dinheiro público irriga o capital improdutivo do sistema financeiro e o agronegócio. Neste caso, para um retorno econômico discutível e impacto ambiental negativo. Nada é destinado para a EcoSol se considerarmos o governo federal. Precisa-se desprivatizar o Estado brasileiro, que atualmente proporciona desigualdade socioeconômica, as mais variadas opressões e destruição ambiental. Para isso, é urgente a emergência de mobilização social e eleição de governos democráticos e populares. No entanto, existem governos de centro que aceitam apoiar a EcoSol. Deve-se dialogar e disputar os recursos da sociedade que administram para a implantação de políticas públicas pertinentes.
Pensar que a EcoSol vai se desenvolver sem o apoio de políticas públicas é como desejar chegar à lua sem foguete. Em relação às dificuldades enfrentadas para o cultivo da terra na Colônia, há o óbvio ensinamento de que não adianta somente distribuir terra, tem que haver apoio integral do Estado aos agricultores familiares e às suas associações e cooperativas.
A ação de oportunistas, como ocorreu na Colônia Anarquista Cecília, também é uma realidade no movimento de EcoSol e nos empreendimentos de economia solidária. As redes sociotécnicas que portam os projetos de EcoSol devem ter transparência e vigilância para serem estáveis. Isso se faz com regras claras, estabelecidas em regimentos construídos coletivamente, e responsabilidades definidas. Democracia não é sinônimo de bagunça, obviamente, onde qualquer um pode acessar os recursos coletivos e gastar como quiser. Transparência e vigilância são aspectos importantes da autogestão e devem ser praticadas como forma de fortalecer as relações, não servindo para serem triviais instrumentos de cobranças. Os oportunistas, comumente, reivindicam a quebra de regras estabelecidas de forma coletiva, afirmam que são autoritárias, se autodenominam os legítimos porta-vozes dos excluídos. O objetivo que têm é realizar ações individualistas, em benefício próprio, seja de caráter material ou político. A melhor forma de neutralizá-los é exigir que respeitem as decisões do grupo.
Quanto à distribuição dos recursos, deve ser feita de acordo com o tempo que cada um dedicou ao trabalho. Em caso de impedimento por doença ou outro motivo reconhecido coletivamente, o integrante do empreendimento deve ser apoiado por aqueles que tiveram condições de trabalhar. Apoiar quem não quer trabalhar por opção é incabível. Infelizmente, esta situação ocorria na Colônia.
O amor livre, outro fator determinante para a dissolução da Colônia Anarquista Cecília, está inserido na ideia de que a família é um entrave para a construção coletiva. No entanto, é perfeitamente possível ter o afeto e a proximidade familiar, assim como crenças religiosas e, simultaneamente, dedicar-se à luta política por uma sociedade mais justa e igualitária. O principal ensinamento que se pode tirar é que a ideologia não deve representar um punhado de dogmas que são impostos às pessoas. Respeitar a individualidade de cada um dos envolvidos no projeto autogestionário não é sinônimo de individualismo.
A experiência social da Colônia Anarquista Cecília ainda desperta o interesse de muitas pessoas para visitarem o local. No entanto, atualmente a plantação de soja ocupa o território que um dia foi um projeto que representa o sonho mais bonito que os seres humanos podem ter: viver em uma sociedade justa e igualitária. No município de Palmeira foi construído um memorial devido à existência de demanda por informações dessa experiência, onde além da reprodução das casas simples onde moravam os anarquistas, há um busto do seu idealizador, Giovanni Rossi.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.