Em novembro de 1999, foi realizado em Salvador/BA o seminário intitulado “Economia dos Setores Populares: entre a realidade e a utopia”. No ano seguinte, foi publicado um livro, com o mesmo título, com a transcrição das exposições que foram feitas por pensadores e militantes do movimento de construção de uma outra economia, como Paul Singer, Francisco Oliveira, José Luis Coraggio, Luiz Inácio Gaiger, Gabriel Kraychete, José Luís Fiori e Marcos Arruda.
Kraychete, um dos organizadores do seminário e do livro, definiu economia dos setores populares como “as atividades que, diferentemente da empresa capitalista, possuem uma racionalidade ancorada na geração de recursos (monetários ou não) destinado a prover e repor os meios de vida, e na utilização de recursos próprios, agregando, portanto, unidades de trabalho e não de inversão de capital. No âmbito dessa economia dos setores populares convivem, além das atividades realizadas de forma individual ou familiar, as diferentes modalidades de trabalho associativo, formalizadas ou não, a exemplo das cooperativas, empreendimentos autogestionários, oficinas de produção associada, centrais de comercialização de agricultores familiares, associações de artesãos, escolas e projetos de formação de trabalhadores, organizações de microcrédito, fundos rotativos etc”.
Recentemente, Kraychete, fundamentado nos resultados do seu estudo, afirmou que em 2019, 22,2% da população economicamente ativa da região Sudeste do Brasil integrava as atividades realizadas de forma individual e familiar. Esse percentual é superior nas regiões Norte e Nordeste.
No Maranhão, por exemplo, chega a 33%. Os ganhos com essas atividades, em sua maioria, situam-se em um valor próximo a 0,5 salário mínimo, o que corresponde a R$ 550,00.
Importante ressaltar que o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioecômicos (DIEESE) definiu para o mês de julho de 2021 que o salário mínimo deveria ser R$ 5.421,84 para atender às necessidades básicas de uma família.
Considerando que a pandemia de Covid-19 provocou a redução das atividades econômicas ocasionando demissões nas empresas, o número de pessoas que migraram para atividades individuais e familiares deve ser ainda maior e as dificuldades que enfrentam são imensas.
Ressalte-se que a economia dos setores populares não trata de microempresas, pequenas ou médias, mas de atividades econômicas individuais, familiares e associativas.
Como exemplo, pode-se citar a mulher que faz bolo em casa, a pessoa que usa um espaço de casa como um salão de beleza, aquele que faz e comercializa churrasquinho, agricultores familiares que se associaram para fazer entrega em domicílio de seus produtos, catadores de materiais recicláveis avulsos ou cooperados ou um grupo de mulheres que trabalha de forma cooperada em uma lavanderia. Nessas atividades não existe demissão para redução dos custos ou, na gestão, a separação de recursos da família e os da empresa.
Considerando as empresas, Jânio Benith, então presidente da Junta Comercial do Estado de São Paulo, em apresentação realizada no município de São Vicente no ano de 2018, afirmou que em 2017, na Baixada Santista, foram constituídas 5.610 empresas e 3.157 deram baixa, ou seja, 56%.
A título de exemplificar a gravidade do quadro econômico já naquele ano, quando não era tão acentuado como o atual, em São Vicente foram constituídas 586 empresas e fecharam 434, número correspondente a 74%. Essa situação revela que o número de empregos criados não é suficiente para atender à demanda daqueles que buscam o primeiro emprego somados aos que estão desempregados.
Benith informou, ainda, que considerando 2016 e 2017, foram constituídos 4.205 microempreendedores individuais e 240 deram baixa. Esses dados sugerem que os desempregados migram para MEI em esforço para terem um meio de sobrevivência e para tentarem pagar a previdência. Renato Dagnino, professor da Unicamp, afirma que aproximadamente 100 milhões de brasileiros em idade de trabalhar não têm e não terão emprego.
Esses dados nos fazem crer que o modelo emprego/trabalho está esgotado e que as atividades econômicas individuais e familiares não remuneram adequadamente. O discurso de que as pessoas devem ser empreendedoras e que podem vencer com trabalho individual e aqueles que não vencem competindo no mercado são derrotados e incapazes, não corresponde à realidade, sendo uma tentativa por meio de convencimento para dar sobrevida a um sistema que promove a concentração de renda devido à sua lógica de acumulação de capital e limitação de oportunidades. A maioria da população e o meio ambiente padecem para que uma minoria tenha muito mais do que precisa para viver.
Retornando ao seminário realizado em 1999 sobre economia dos setores populares, observa-se que daquele ano até 2021, a qualidade de vida dos brasileiros melhorou entre 2003 e desde 2017 e, atualmente, apresenta acentuada degradação para parcelas expressivas da população, inclusive com o retorno do país ao mapa da fome em um quadro com desemprego elevado e retorno da inflação.
O professor Luiz Inácio Gaiger, naquele evento, questionou: “Como passar de empreendimentos econômicos que podem ser hesitosos, mas que ficam isolados, para uma economia solidária?”. Nesta questão, Gaiger sugere que o trabalho associado, que também integra a economia dos setores populares, é melhor para a construção de uma sociedade inclusiva, visto que a crise econômica é provocada, principalmente, pelo neoliberalismo, que se fundamenta no princípio econômico da maximização do lucro, em uma lógica individualista, de competição.
A pertinência dessa questão pode ser verificada quando se analisa os dados da economia solidária no Quebéc, apresentados por Claude Dorion, em 2017, na VI Conferência Internacional de Pesquisa sobre Economia Social e Solidária, que mostra as taxas de sobrevivência de cooperativas e, também, de empresas capitalistas.
Após cinco anos de criação, em cooperativas de consumidores, a taxa de sobrevivência é de 90%; em cooperativas de produtores é de 73% e em cooperativas de trabalho, 48%. Já das empresas privadas, de forma geral, a taxa de sobrevivência é de 37%.
Questionado sobre a razão destas empresas terem uma sobrevivência nitidamente inferior àquelas das cooperativas, Dorion afirmou que nas empresas as decisões são definidas por uma cabeça, a do proprietário. Enquanto nas cooperativas, há várias cabeças para apontarem soluções diante dos problemas.
Assim, nas crises, as decisões são coletivas, porque o problema é coletivo. Nas atividades econômicas individuais e familiares, comumente, os esforços para pensar soluções e operacionalizá-las também são limitadas. O efeito, nestes casos, não é a dissolução da iniciativa econômica, como ocorre com a empresa capitalista, mas a baixa rentabilidade.
Disponibilizar crédito e apoio técnico para as iniciativas econômicas individuais e familiares provavelmente não seriam ações suficientes para torná-las capazes de gerar renda para atender às necessidades de uma família, considerando o salário mínimo do DIEESE. A fundamentação desta afirmação se encontra nos dados da JUCESP, onde constata-se o elevado número de baixas de empresas na Baixada Santista.
É importante ressaltar que todas as iniciativas econômicas individuais, familiares e empresas contam com os serviços do SEBRAE. Esta instituição comumente enaltece o empreendedorismo e apresenta alguns casos de sucesso fundamentados na boa gestão. Fica a questão: as causas do número expressivo de empresas que encerram as suas atividades na Baixada Santista estão na má gestão ou é resultado da dinâmica do sistema capitalista, ou seja, um fenômeno estrutural e sem conserto?
Faz-se necessário construir outras possibilidades para que as iniciativas econômicas individuais e familiares tenham durabilidade. Crédito, apoio técnico e boa gestão são muito importantes, obviamente, mas há a necessidade de criação de relações de reciprocidade entre aquelas iniciativas econômicas e destas com o mercado local.
Deve-se construir uma economia fundamentada nos princípios e valores da economia solidária, com a migração das iniciativas individuais e familiares para uma atuação coletiva, com apoio de políticas públicas. Deve-se envidar esforços para que essa economia construída não sirva para sustentar parasitas do sistema financeiro ou as plataformas digitais da exploração.
Assim, deve-se construir um mercado local solidário e não fortalecer o mercado como se conhece, fundamentado na relação de força e competição.
Na Baixada Santista, emergiram os chamados circuitos curtos de comercialização fundamentados na proximidade e na solidariedade. São cadeias construídas por redes de relações sem intermediários, dos produtores e prestadores de serviços direto para o consumidor, em Bertioga, Guarujá, Santos, Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe.
Esses circuitos são representados por organizações de consumo responsável, feiras da agricultura familiar e grupos de empreendimentos individuais e familiares, rurais e urbanos, que fazem entrega conjunta em domicílio.
Essas inciativas caracterizadas como da economia solidária geraram trabalho e renda para produtores e prestadores de serviços, possibilidade de consumo de orgânicos pelos consumidores, assim como redução de perdas dos alimentos.
Entregadores se uniram para a realização de entrega cooperada e não explorada por plataformas digitais. Além disso, quantidade expressiva de pessoas passaram a comercializar produtos que faziam para consumo próprio com o objetivo de gerar renda.
Grupos de artesãs e artesãos também migraram para exposição e comercialização em espaços públicos, com estreitamento de relações. Essas iniciativas que representam construção coletiva, trabalho associado com a gestão dos meios de comercialização, devem ter apoio do poder público para que se expandam. Em algumas cidades as prefeituras já apoiam.
Assim, o apoio governamental deve ser direcionado para as experiências já existentes fundamentadas no associativismo e cooperativismo, assim como no fortalecimento das iniciativas individuais e familiares e, também, para a adoção de práticas associativas entre essas unidades, em um processo de transição solidária, que é uma forma de praticar a economia solidária de forma paulatina, com aquisição de conhecimento sobre o tema e assimilação de práticas de gestão coletivas.
As ações devem objetivar a criação de um ambiente de cooperação entre integrantes de empreendimentos e destes com os consumidores locais e poder público para garantia do trabalho e aumento da renda. Trata-se, fundamentalmente, de relações de reciprocidade para a criação de um mercado local e sistema de financiamento solidários.
Sabe-se que há limitações estruturais para a ampliação da economia solidária e que são impostas pelas elites econômicas. A Secretaria Nacional de Economia Solidária foi extinta pelo governo Bolsonaro e, junto, a política pública que existia; a falta de uma lei federal que atenda às necessidades das pequenas e médias cooperativas, visto que a atual, Lei 5.764, é de 1971 e cria entraves; o descaso do governo do estado de São Paulo com a Lei 14.615, aprovada em 15 de dezembro de 2011, que foi ignorada pelos governadores que passaram pelo Palácio dos Bandeirantes sem sancioná-la e operacionalizá-la, inclusive pelo atual governador; municípios da Baixada Santista que não têm o marco legal da economia solidária, nem política pública, e outros que têm a lei, mas é ignorada pelos prefeitos.
Não se pode esquecer da afirmação do Paulo Guedes em reunião ministerial de 22/04/2020, que o governo federal deve disponibilizar recursos somente para grandes empresas, que este é o único caminho para o desenvolvimento. Todos esses fatos mostram um quadro oposto àquele de Québec e ressaltam a importância de se ter um Estado solidário e não um Estado apropriado pela elite econômica, como ocorre atualmente no Brasil, para se construir uma sociedade mais justa, que concilie o econômico, o social e o ambiental.
Apesar desses problemas, o Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista, em 2020, apresentou 54 propostas (veja aqui), que podem perfeitamente ser implantadas pelos governos municipais e criariam condições para a viabilização das atividades econômicas individuais e familiares por meio da economia solidária.
Apresentam-se neste texto apenas onze, que já seriam determinantes para proporcionar inclusão socioeconômica. Assim, as iniciativas econômicas individuais e familiares teriam apoio para fazerem a transição solidária, com a adoção de ações e práticas para o trabalho associativo com outros empreendimentos, seja para comercialização, financiamento ou prestação de determinado serviço.
– Implantar Programa de Economia Solidária no município, respaldado por marco legal que contemple criação de centro público, financiamento e conselho municipal.
– Implantar o Centro Público de Economia Solidária para assessorar nos aspectos técnicos, organizacionais e de mercado, cooperativas, associações e grupos informais, com atividades permanentes que intencionam a formalização, proporcionando capacitação, incubação e apoio no desenvolvimento de tecnologias sociais.
– Implantar a renda básica associada a um banco social – e respectiva moeda social – do município com conselho paritário entre poder público e população.
– Cadastrar as atividades individuais, familiares, associativas e o comércio local para que trabalhem com a moeda social.
– Financiar as atividades individuais, familiares e associativas pelo banco social, considerando investimento, custeio e formação continuada para gestão e adoção dos princípios e valores da economia solidária.
– Implementar as normativas que favorecem pequenos empreendimentos para processamento de produtos alimentares, incluindo o pescado proveniente da pesca artesanal e os produtos da agricultura familiar, fomentando a agregação de valor e o reconhecimento do valor social e cultural dessas produções.
– Implantar uma política de contratação de cooperativas de trabalho, organizadas a partir das atividades individuais, familiares e associativas, para a realização dos serviços necessários à municipalidade, notadamente dos catadores de materiais recicláveis, serviços e empreendimentos de apoio ao veranismo – como manutenção de banheiros e chuveiros – lavanderia, serviços de alimentação, limpeza e fornecimento de itens manufaturados, como máscaras e aventais.
– Promover eventos, feiras e implantar espaços de comercialização de produtos e serviços de atividades individuais, familiares e associativas com os expositores participando da gestão.
– Desenvolver programa de apoio aos usuários do sistema de saúde mental e egressos do sistema prisional para que criem cooperativas sociais.
– Apoiar os entregadores e condutores de veículos que trabalham individualmente ou de forma associada para o cooperativismo digital com apoio para elaboração e gestão de aplicativos.
– Promover a inclusão da economia solidária como tema a ser abordado no ensino fundamental e médio da rede pública municipal e estadual.
A solidariedade se expressou desde o início da pandemia com intensidade entre os brasileiros e brasileiras, que se mobilizam para apoiar o seu semelhante em dificuldade, seja adquirindo produtos ou com doações.
Agora, o desafio que é lançado é criar condições fundamentadas na solidariedade, em forma de reciprocidade, para a criação de uma organização econômica perene que emancipe a nossa gente.
Considerando que o Estado equivale ao princípio que faz a redistribuição dos recursos no sistema econômico, as suas ações devem ser voltadas para a população pobre que encontra extrema dificuldade para sobreviver em uma sociedade extremamente desigual orientada pela competição.
A economia solidária nasceu de iniciativas dos trabalhadores e é a única forma de superação da trágica situação socioeconômica atual experienciada pela maioria da população brasileira.
Caso os atuais governantes não implantem políticas públicas que fortaleçam a economia dos setores populares, com foco na economia solidária, a única saída é trocar de governantes, elegendo aqueles que têm compromisso com a maioria da população e não com grupos econômicos que se fartam dos recursos públicos e promovem pobreza.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista