O crime organizado se apresenta de diferentes formas no Brasil. As mais conhecidas são as milícias e o tráfico de drogas, que se espalham por diferentes segmentos da sociedade, mas se inserem, comumente, nas comunidades pobres. Por meio da intimidação e do clientelismo submetem essas populações à condenação, com as oportunidades de organização ceifadas, sem que possam atuar coletivamente para a resolução de seus graves problemas.
As milícias e o tráfico de drogas, apesar da diferença existente no modus operandi, se organizam com fundamentação no egoísmo individual e de grupo, de acordo com as regras das facções, e não têm qualquer compromisso com as comunidades que exploram. Os chefes de cada uma das organizações são verdadeiros patrões que, à força, determinam comportamentos e o funcionamento das comunidades. Nada pode ser feito pelos moradores sem conhecimento e autorização dos comandos.
As milícias surgiram se apoiando na falsa ideia de que combateriam os traficantes de drogas nas comunidades. É conhecido o caso de Rio Pedras, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, onde esses grupos paramilitares exploram a população de diferentes formas, sendo o núcleo desse tipo de organização criminosa que se expandiu pelo Brasil.
Inicialmente, os milicianos cobravam taxas de segurança a pequenos comerciantes e, atualmente, também lhes impõem a obrigatoriedade de comercialização de mercadorias roubadas, como: cigarros, carnes, chope e até camarão em período de defeso, quando não se pode pescar. Ao longo do tempo, com a ampliação das ações das milícias, foram incorporadas a cobrança de estacionamento, uso da internet, comercialização de gás, coleta de lixo, autorização para pescar, intermediação de contratação de mão de obra, uso de aterros clandestinos, construção irregular de imóveis, seguro de automóveis e operação de aplicativos para condutores de veículos. Proprietários de veículos e moradores são obrigados a usar o aplicativo das milícias e a utilizar todos os serviços citados, sob pena de sofrerem severas punições.
As milícias disputam com o tráfico alguns territórios e, em outros, os acordos ou tomadas à força o controle da venda de drogas, unificou esses dois segmentos. As disputas distribuem balas perdidas e tiram a paz dos moradores das comunidades.
O crime organizado, milícias e tráfico, articula poder político e inserção nas comunidades, constituindo redes, inclusive com a participação de parlamentares. No Rio de Janeiro, foi criado o Complexo de Israel, como denominam os seus integrantes. Essa organização uniu milicianos e traficantes que se autodenominam evangélicos para a espoliação da população, comercialização de drogas e ataques aos centros de religiões de matriz afro-brasileiras.
Além disso, é amplamente conhecido o fato de milicianos terem sido homenageados na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro por um dos filhos do presidente da República e as origens do assassinato da vereadora Marielle Franco que, inclusive, presidia a Frente Parlamentar em Defesa da Economia Solidária. Esse tipo de homenagem é um ato de identificação e reciprocidade. Homenagear miliciano para quê? Com qual objetivo?
A flexibilização das regras de uso de armas de fogo no Brasil também se insere neste contexto. O importante para os milicianos que atuam no poder público e nas comunidades é estimular a competição, a desordem, o tratamento de conflitos com a eliminação do oponente, a destruição de qualquer sentimento de solidariedade e confiança entre as pessoas, ou seja, a base do capital social.
Robert Putnam, no livro Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna, faz referência ao capital social como “as características de organização social tais como as redes, as regras e ao mesmo tempo a ação coletiva fundamentadas na confiança, que facilitam a coordenação e a cooperação para o bem de todos, ou seja, para aumentar a eficiência da sociedade”.
Com parte expressiva dos brasileiros armados após o estímulo do governo Bolsonaro, a desconfiança está instaurada no comportamento das pessoas, o que condena o Brasil a não ter um projeto coletivo de sociedade que promova a qualidade de vida fundamentado na cooperação. Enfim, trata-se de país que caminha a passos largos para estar integralmente submetido à lógica de milicianos.
Esses grupos paramilitares, além da exploração e medo que disseminam, eliminam o capital social das comunidades ou não o deixam ser construído. Esse tipo de capital é a base para se ter bons resultados com programas e projetos coletivos para a resolução dos diversos problemas existentes. O poder público, quando apoia ou implementa políticas de melhoria da qualidade de vida das populações, também enriquece o capital social e cria condições para que os projetos coletivos atinjam os seus objetivos.
O combate ao crime organizado não pode se limitar ao âmbito da segurança pública clássica, na ótica da Rota ou do Bope. Exige-se o desmantelamento das redes do crime organizado que estão entranhadas no poder público com uso da inteligência, com a prisão de seus integrantes, sem que as comunidades sejam invadidas e a população pobre assassinada.
Outras ações devem ser realizadas de forma que possibilite a construção do capital social nas comunidades e implementação de projetos. É importante que haja o confisco dos recursos acumulados pelos criminosos para a criação de programas e projetos de geração de trabalho e renda, assim como de educação para uma outra economia, com base na solidariedade em forma de reciprocidade.
A construção de relações de confiança no seio das comunidades e destas com o poder público é de fundamental importância para a viabilização de redes sociotécnicas integradas por servidores públicos, profissionais do terceiro setor e as comunidades, que irão construir uma outra realidade com base na cooperação para o bem coletivo.
Como exemplo da viabilidade desse tipo de ação pode-se citar o caso da máfia na Itália, analisado por Elisabetta Bucolo no artigo intitulado “O Papel das cooperativas sociais na gestão dos bens confiscados da Máfia na definição de uma política pública Local”, publicado na Revista Francesa de Socioeconomia, com a análise de quatro cooperativas que receberam recursos com a aplicação da Lei 109/96.
A autora afirma que foi estabelecido um espaço de interação entre autoridades públicas locais e atores sociais vinculados a cooperativas, definindo disposições em matéria de gestão e de bens confiscados do crime organizado, destinados a uma utilização social. Houve mobilização da sociedade civil para a criação da referida lei, com a utilização do slogan “uma lei para a restituição aos cidadãos o que lhes foi roubado”.
Para Bucolo, o confisco dos recursos do crime organizado proporcionou grandes perdas para as organizações mafiosas, não somente pelo dinheiro, mas sobretudo pelo desgaste da imagem e da autoridade nos territórios onde agem. Trata-se, portanto, de restituição às comunidades das riquezas acumuladas individualmente pelos mafiosos e por suas organizações. Esse ato representou a luta contra a criminalidade associada a projetos de mudança da governança territorial.
No Brasil, há necessidade de mudanças políticas urgentes e superação do atual Estado privatizado que favorece a atuação do crime organizado nas ações de espoliação da população pobre. Até mesmo na compra de vacinas contra a Covid-19 as milícias atuaram no seio do Estado, com apoio velado do governo federal, para roubar uma fortuna.
A economia solidária apresenta em diversos países, como Finlândia, Nova Zelândia, França, Canadá, Holanda e, também, o Brasil, excelentes resultados. No entanto, é quase impossível implementar atividades que contribuem para a democratização da economia, que requer o engajamento cidadão, em territórios dominados por milícia e tráfico.
Como implementar, onde impera o medo e a espoliação da população pobre, os bancos comunitários, moedas sociais, fundos rotativos solidários, circuitos curtos de comercialização, turismo de base comunitária, trabalho associado para prestação de serviços com mulheres e homens, cooperativas de coleta de materiais recicláveis, grupos culturais?
O Brasil precisa de uma lei como aquela da Itália, mas que seja resultado da reconstrução do Estado brasileiro. Precisa-se urgentemente de um Estado Solidário, que deve ser iniciado com a retirada do poder executivo e legislativo dos representantes do crime organizado.
É incontornável oferecer uma educação para formar cidadãos que tenham visão crítica da sociedade, que pensem e ajam no coletivo. É urgente a taxação de fortunas, a implementação de uma Lei das Cooperativas que atenda às necessidades dos empreendimentos econômicos solidários e não de organizações que aglutinam verdadeiras empresas capitalistas com nome de cooperativa, a garantia da renda básica, o fortalecimento e ampliação do Serviço Único de Saúde e do Serviço Único de Assistência Social, a valorização da agricultura familiar, a demarcação das terras indígenas e quilombolas, a implementação de um plano nacional de apoio à economia solidária, considerando, também, a viabilização dos empreendimentos individuais e de gestão familiar.
É importante ressaltar que a economia solidária também deve ser estendida à população prisional e suas famílias. Atualmente, há cerca de 800 mil presos no Brasil, sendo a maioria jovens, negros e negras, que têm o direito de reconstruírem as suas vidas. Chega de serem vítimas do crime organizado fora e dentro dos presídios.
Com o crime organizado atuando nas comunidades e com o controle do Estado brasileiro, não verás país nenhum.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista