“Acredite em mim: a vida tem razão, em todos os casos” (Rainer Maria Rilke).
Estes dias de carnaval peguei para reler o Cartas a um jovem poeta. Creio que a edição de bolso que encontrei em minha biblioteca era de Lia. Foi um dos livros que ela utilizou em algum de seus círculos de escuta e escrita. Curioso que nunca tenhamos falado sobre o Rilke, ao menos não me lembro de ele ter sido objeto de alguma conversa entre nós. Lembro-me, sim, de citações ao poeta alemão em antigos papos com Roberto e Zé, de Ju trazê-lo à tona recentemente. Enfim, é um clássico, e nestes tempos em que proliferam cursos para novos escritores, costuma ser adotado como bibliografia básica.
No meu caso, resolvi reler Rilke por conta de um bloqueio criativo. Existencial.
Tenho mantido uma rotina de produção de textos nos quais falo sobre o amor e o luto, sobretudo, mas também sobre literatura e Santos, a cidade que escolhi para viver. Esses textos, eles me curam, enquanto os escrevo. Não raro, tecendo-os, debulho-me em lágrimas, até secar o reservatório do meu desespero. E isso me ajuda a encontrar mínima disposição para cumprir as tarefas pessoais e profissionais que exigem de mim alguma sanidade.
Quando comecei não tinha ideia de que se tornaria uma série. Fazia pouco mais de um mês que minha amada havia morrido e o primeiro texto brotou. Como me fez bem escrevê-lo, fiz um acordo comigo: publicaria somente crônicas escritas com a mais absoluta verdade interior. Ninguém me pediu para escrevê-las. Não sou pago por elas. Não penso em nenhum leitor quando as elaboro. Se elas existem, é exclusivamente porque preciso que existam. Muitas delas são desgastantes, consomem enorme energia para transformar sentimentos que eu reputava indizíveis em histórias. Mas ao circularem, trazem alimento para minha alma, por meio de pessoas que, por gostarem do que leram, enviam-me carinhos e afagos. Esse amor gera diálogos que me ajudam a perseverar no processo de aceitação.
Escrever sobre minhas dores tem me ensinado muito. Descobri, por exemplo, que no lapso entre o que sinto e o que escrevo existe um rio caudaloso, no qual se banham minha memória e minha imaginação, minhas convicções e minhas recusas, meus medos e minha coragem, meus desejos e recalques, meus sonhos e neuroses. É esse rio que irriga minha escrita. Mas ele secou. Depois de semanas desertificado, recorri a Rilke:
“…sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples ‘Preciso’, então construa sua vida de acordo com tal necessidade”.
Numa madrugada de insônia, ao fazer o teste que Rilke sugeriu ao jovem Kappus, respondi, sem titubear: escrever foi a forma que encontrei para permanecer vivo.
Ao mergulhar no rio da minha vida, por vezes nadando contra a correnteza ou simplesmente boiando na velocidade estável das águas que buscam o mar, pesquei lembranças e as eternizei, arrancando-as para fora de mim. Ah, sim, eu preciso disso! E tenho construído minha vida de acordo com essa necessidade que pulsa e se impõe sobre as outras. Mas travei porque me cansei. Não de escrever, mas de viver.
Luiz Antônio Simas diz, inspirado em sua vivência nos terreiros de Candomblé, que o contrário da vida não é a morte, mas o desencanto. É disso que se trata.
Nove meses depois que Lia morreu, passei a acreditar que não me resta nada para fazer neste plano. Em um voo pássaro, me vi paradoxalmente morto à beira daquele rio seco, mas com meus frágeis sinais vitais ativos. Escrever? Qual o quê! Rastejando pela lama, bêbado e infeliz, percebi uma escotilha em meio às pedras e ao abri-la escorreguei por um túnel onde a luz não entra, o vazio reina e a solidão não é companheira. Encolhido e calado, percebi que a saudade pode ser um martírio. Por dias, chorei e chorei e chorei. Não consegui esconder de ninguém, e isso fez com que eu me sentisse sugado para o fim do túnel.
No auge da tristeza, sonhei algumas vezes com Lia e, em um desses sonhos, em que estávamos tão felizes juntos, pedi a ela que, por favor, me impedisse de acordar. Eu sabia que teria de voltar, mas não queria. Ao despertar, fiquei irritado, profundamente insatisfeito. Passei o dia procrastinando em minha cama, derrotado. Não cheguei, como Romão, o catador que me inspirou a iniciar esta série de crônicas, a pensar em cometer suicídio. Mas rezei para um raio cair em minha cabeça ou um carro me atingir na contramão.
Um áudio que ela me enviou um ano atrás e um texto de seu diário que transcrevi me puxaram de volta à superfície. Ainda não me habituei com a luz do sol. Diante dela, os olhos ardem, mas ao menos sinto que meu rio, embora raso, voltou a encher e se mover. Uma prova disso é que estou escrevendo, ou seja, vivendo.
* * *
Numa outra madrugada de extremo desespero (as madrugadas podem ser terríveis), em que a saudade se portava como um sádico torturador, busquei mensagens antigas em meu telefone. Precisava ouvir a voz de Lia. O primeiro áudio que encontrei foi enviado a mim às vésperas do carnaval de 2020. Não me lembrava dele. Ao ouvi-lo, tive a sensação de que ela o havia gravado naquele momento, para me ajudar a escapar do túnel da tristeza.
“Oi Rodriguinho, meu amor, estou aqui encostadinha na muretinha, em frente ao mar, tomando um ventinho neste dia de calor, dando graças a Deus por estar aqui, por estar bem, e conectada pensando em você, muito forte. Eu espero que você encontre em algum lugar as energias de reequilíbrio para a gente poder atravessar mais essa etapa das nossas vidas partilhadas. Tou num dia tranquila, consciente, e queria te dizer que eu te amo muito, que sou muito grata por tudo que a gente tem vivido juntos. Eu sinto muito todas essas dificuldades que a gente tem atravessado. Mas ao mesmo tempo agradeço por ter você ao meu lado. Queria te recomendar, se você puder, respira quando a coisa apertar, que tudo é cíclico, tudo vai e vem, tudo vai e vem, vai dar tudo certo”.
Passei dias ouvindo e reouvindo a mensagem. Analisei cada detalhe dela. Adoro escutá-la dizer “Rodriguinho”. Também sinto muito pelo que aconteceu conosco, pela interrupção abrupta de nossas partilhas. Mas, de alguma forma, e isso não deixa de ser mágico, elas seguem, as trocas. Eu disse isso a ela tantas vezes quanto pude. Mas não talvez tanto quanto gostaria. Aprender a respirar tem sido um de meus grandes desafios. Meditar e aceitar a impermanência, minha quimera. Eu entendo o que ela diz, profundamente: tudo é cíclico. Mas quando chegará o ciclo em que voltaremos a nos encontrar? Voltaremos?
Relendo meus diários, o que faço em busca de respostas, encontrei-me com outros registros que atestam ser o luto feito de muitos dias difíceis. Não começou ontem meu calvário. Do diagnóstico ao último suspiro, foram meses e meses de provação. Depois de sua morte, uma nova etapa se iniciou, ainda pior. Mas, como Lia sabidamente me alertou, tudo é cíclico, vai e vem, como ondas de seu amado mar. Equilíbrio, porém, tem sido difícil visualizar. O luto parece uma profusão de tormentas, em que nuvens azul-marinho de repente se apoderam do céu, sem aviso prévio, e com seus raios e trovões atiçam as águas, que se revoltam. Pouquíssimos são os momentos de calmaria. Quando sinto que estou adentrando um, aproveito desconfiado. Sei que não durará
Escrevo numa quarta-feira de cinzas. Lia nasceu numa quarta-feira de cinzas, 42 anos atrás. Na semana passada, transcrevi de seu diário dois textos registrados antes daquela que seria sua última festa de aniversário. Emocionei-me com muitos trechos. Mas um deles pareceu-me especialmente escrito para me ajudar a encarar os dias de sua ausência.
“O sofrimento é inerente, mas é ilusório. Não devo me apegar a ele, mas ser capaz de vislumbrar o infinito lá para além dele. E então acredito que possamos estar mais próximos de Deus, essa energia divina de onde viemos e para onde vamos voltar. Definitivamente. Não, essa não é uma boa palavra, pois nada é definitivo”.
E ela prossegue:
“A escrita é um caminho para que eu possa estar mais próxima da luz, menos presa aos desígnios da mente. Essa armadilha que parece intransponível. E o tempo? Ah, o tempo… é um presente e também uma ilusão. Por isso digo a mim mesma, desapegue e deixe suas águas fluírem. Tire os galhos do caminho porque a força dessas águas é bem maior. E ame. Porque é a mais especial das dádivas terrenas”.
Escrever, para se aproximar da luz. Escrever, para livrar-se dos desígnios da mente. Escrever, para manipular o tempo. Enganá-lo? Escrever, para deixar as águas de meu rio fluírem, pelos olhos, pela boca, pelas narinas, pelas mãos que tocam as teclas. Escrever para amar e ser amado, porque amei e fui amado. Escrever porque um dia não poderei mais escrever. Escrever para que seja eterna nossa história, não apenas enquanto durou. Escrever, sozinho e triste, mas atento, porque é assim, como ensina Rilke, que o futuro entra em nós:
“(as tristezas) são os instantes em que algo de novo penetrou em nós, algo desconhecido: nossos sentimentos se calam em um acanhamento tímido, tudo em nós recua, surge uma quietude, e o novo, que ninguém conhece, é encontrado bem ali no meio, em silêncio”.
Sei que esses trechos escritos por Lia eram conversas íntimas dela com ela mesma. Olhados à distância, são testemunhos de seu honrado e elevado processo de preparação para a morte. Em mim, guardião de suas letras, ressoaram como chamados à vida.
Quanto ela valorizava respirar a maresia nos momentos em que as dores lhe davam trégua! Como naquela tarde em que me gravou o áudio, porque queria que eu não sucumbisse depois de perdê-la. Por isso só me resta dizer, bem-vinda, tristeza, e desejar que possamos aprender a navegar juntos pelo rio da minha vida. Aceitar-nos é aceitar-me.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista