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A luta ancestral contra o patriarcado

“Todo santo dia uma menina está vivendo em seu corpo o que a pequena menina capixaba viveu nas mãos de seu tio. Se isso não nos indignar, o que irá?”

Mulheres partilham cálice em uma sociedade matriarcal grega (Foto: Reprodução)

Passei a semana pensando na menina de 10 anos que realizou um aborto legal sob espetacular cobertura midiática. Uma garota que foi estuprada desde quando tinha 6 anos por um tio que deveria protegê-la não violentá-la. Navegando em minhas mensagens pessoais, recebo um vídeo de meu cunhado Tiago e deparo-me com uma câmera que me leva até uma porta aberta por Lia, aos 9 anos. Ela com um sorriso matreiro no rosto, que eu desconhecia. Fico curioso. O que Lia menina veio fazer aqui?

A cena evolui para um quarto em que Lu, minha futura sogra, e Márcia, tia querida e polemista, grande amiga que a vida me daria, estão sentadas na cama olhando fotos. Na mesma cama também está uma Maria relativamente jovem, cabelos cor de cobre, a avó para a qual Lia rezava em seu processo de aceitação da morte e que ansiava reencontrar nos planos astrais. Tiago também está ali, acompanhando tudo com vivacidade. Se meus cálculos estão certos, não tem nem cinco anos.

Corta. Segue o vídeo. Márcia conduz uma entrevista, como se fosse a apresentadora da TV Mulher, programa matinal da Rede Globo dos anos 1980 com Marília Gabriela. Estão sentadas no sofá ela, as duas filhas, Júlia e Marina, Dona Maria e Lia, de quem a câmera se aproxima. Márcia diz que aquela é uma conversa feminista, e pergunta a Lia menina o que ela tem a dizer sobre o papel da mulher em Londrina no ano de 1988. Ela responde: “não tenho nada a dizer”.

Márcia insiste: “como está a situação da mulher aqui em Londrina, na sua escola?” Lia rebate, com seu sotaque do norte do Paraná: “na minha escola eles tratam os hómi mal e as muié bem”. Está obviamente tirando sarro. Dona Maria olha para ela e diz: “então as mulheres estão levando vantagem?” Lia parece não ter ouvido o questionamento da avó.

Márcia pergunta para sua sogra: “o que a senhora acha desse assunto?” Maria responde: “esse assunto é muito interessante para nós, mas falta muito para a mulher conseguir o seu espaço”.

O vídeo, guardado por anos no arquivo pessoal de um parente, é comovente. Creio que Lia jamais o viu. Não paro de pensar no quanto ela gostaria de assistir ao posicionamento feminista de sua querida Maria. Se sentiria ainda mais conectada à sua linhagem. Porque se a menina Lia não estava muito interessada em responder a sério o que pensava sobre o papel da mulher na sociedade contemporânea, a adulta Lia tinha esse como seu principal tema de estudo e atuação.

Sobretudo em seus últimos cinco anos de vida, ela tomou contato com seu daemon, e dedicou-se a semear a escuta e o cuidado entre as mulheres, por acreditar que o fortalecimento individual de cada uma era essencial para uma vida saudável e também para a ação coletiva. Esse seu papel nutridor ficou explícito nas muitas homenagens que recebeu nas redes sociais por ocasião de sua morte.

Em seu diário, no texto em que comemora seus 41 anos, em fevereiro de 2020, ela escreve: “Fui buscar nas minhas necessidades e descobertas o que me deixa feliz, o que me possibilita leveza, e fui encontrar nas mulheres a resposta”. Estar entre mulheres, habitando-se e habitando-as, foi a forma que ela encontrou para flutuar sobre a opressão do patriarcado.

Dona Maria estava certa. Muito certa. Desde o fim dos anos 1980 pouco evoluímos no Brasil. No Estado de São Paulo, segundo as estatísticas oficiais do ano de 2019, foram registrados mais de 10 mil casos de estupro. Cerca de 75% desses casos contra meninas.

Na Baixada Santista, 408 dos 562 estupros compilados foram contra vulneráveis. Isso significa que todos os dias, todo santo dia, uma menina é estuprada em nossa região. Todo santo dia uma menina está vivendo em seu corpo o que a pequena menina capixaba viveu nas mãos de seu tio.

Se isso não nos indignar, o que irá?

As possíveis formas de cooperação com a luta feminista conduziam muitas de nossas conversas. Ela acreditava na possível aliança entre mulheres e homens, que só será potente de verdade quando for baseada na igualdade.

Em meu sofrimento solidário, sob efeito deste episódio específico que produziu dor generalizada, tentei lembrar-me do que aprendi com ela e outras companheiras sobre nosso papel, como homens, no combate à violência de gênero.

Lembremos: são os homens que estupram. Na grande maioria dos casos acobertados por uma convicção abjeta de impunidade. Nem sempre é sobre sexo, em todas as ocasiões é sobre poder. É no ambiente íntimo dos lares que as violações ocorrem com maior frequência, principalmente contra meninas indefesas.

A Lia de nove anos, que vi desenvolta no vídeo desta semana, não vivenciou traumas, mas a de treze teve que brigar com um homem que mostrou seu membro a ela em uma viagem intermunicipal. Não conheço uma mulher sequer que não tenha uma história de assédio violento para relatar.

Por isso, o mínimo que temos de fazer é identificar, reconhecer e ser vigilantes com o machismo que nos habita. Uma tarefa diária, que envolve estar aberto à escuta, receber e absorver críticas de uma forma não reativa, entender que se uma ação nossa – ainda que impensada – gerou um efeito negativo em um mulher, esse sentimento deve ser acolhido e não tachado previamente de incompreensão.

Saber a hora de calar. Existem temas, realmente, que não pedem a nossa opinião. Sei que muitos homens – eu procuro não ser um deles mas talvez seja – manifestam desconforto com essa ideia. Não estou defendendo censura prévia, mas compreensão de que jamais é necessário explicar a uma mulher algo que diz respeito à sua vida, ao seu corpo, à sua sensibilidade. É bom e necessário saber ser coadjuvante.

Saber a hora de falar. Por outro lado, há assuntos e situações que exigem de nós posicionamento explícito. É fundamental se contrapor a outro homem que esteja sistematicamente impedindo uma mulher de falar ou que esteja lançando comentários misóginos ou sexistas em um círculo social no qual estejamos presentes. Quem não age diante da opressão se torna aliado. Compactua com a violência.

Que fique explícito: não quero me apresentar como modelo. Desconfio demais de homens que se posicionam publicamente contra o machismo e agem de forma vil no âmbito privado. Tento apenas não ser um desses.

Para cuidar de mim, faço terapia, procuro ajuda nos espaços corretos e assumo minhas fragilidades, sem medo de parecer menos por isso. Persigo meus limites, respeito minhas carências, e tento acolher meus equívocos, que são muitos.

Se escrevo esta crônica, é por me sentir duplamente convocado ao tema: pela minha consciência e pela memória de Lia, uma mulher que viveu para fortalecer outras mulheres e sonhava com a superação do patriarcado. Foi a forma que encontrei de me manter próximo dela e de nossas trocas tão sadias.

Jornalista, escritor e produtor cultural. Um dos fundadores e atualmente diretor-executivo do Instituto Procomum. Cursa doutorado em Ciências Humanas e Sociais na UFABC e tem alguns livros publicados no Brasil e no exterior. Vive em Santos, com seus dois filhos.
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