CASO 1: Eu era um advogado em início de carreira e estava no balcão de uma vara do trabalho. O sujeito ao meu lado, pelo vidro do guichê, solicitou a presença da oficial de justiça. Ela veio. Assisti-o explicar que era um pequeno empresário, que ela o havia procurado, sem sucesso, e agora tinha seus bens bloqueados, queria saldar a dívida e liberar seus bens.
A atitude da serventuária não foi amistosa, e devia ter suas razões, meses sendo ludibriada pelo devedor. Exerceu o poder estatal com soberba, tripudiou do tipo. Ele, então, a chamou vagabunda, folgada, e que a obrigação dela não era julgar, mas sim atender o balcão com educação. Ainda ameaçou dar-lhe umas porradas se a visse na rua. Uma mulher, antes de ser uma funcionária pública. Este caso, verídico, demonstra uma classe média violenta, arrogante e machista.
CASO 2: Eu já era um advogado experiente quando participei de uma audiência de oitiva de um menor infrator. A juíza o tentou intimidar, ao que ele a enquadrou, dizendo que inclusive tomasse mais cuidado, não com ele, menor, mas com a quem ele servia.
Era nos tempos em que duas facções, PCC e PSDB, disputavam o comando do crime organizado. Depois chegaram a um acordo, mas naqueles dias eu me divertia vendo juízes e promotores, os cus às mãos, saindo de comboio e escolta policial do Fórum pra casa todo dia. O comando do crime equivale a uma classe média criminosa, violenta, arrogante e machista.
CASO 3: Policial chamado a uma ocorrência de violência contra mulher no elegante condomínio Alphaville impõe o aparato estatal a um morador que importunava a esposa. A ira do sujeito se desvia da mulher e recai sobre o policial militar, a quem insulta de pobre, miserável, que só tem autoridade sobre desfavorecidos na favela e que ali não manda nada, pois ganha um salário de fome pago com os impostos dele, agressor. Que ganha trezentos mil. A classe média sendo violenta, racista, arrogante.
CASO 4: Fiscal sanitário no RJ admoesta casal que promove aglomeração. É insultado pela mulher, que diz que seu marido é mais que um cidadão, é engenheiro civil e, portanto, muito mais que ele, fiscal, agente do Estado. A classe média arrogante violenta etc.
Eu também acho, na esteira do pensamento da brilhante Marilena Chauí, que a classe média é uma abominação. A revolução burguesa, na França do XVIII, foi por onde esta abominação ganhou o poder e impôs a tal democracia liberal, com seu aparato estatal pronto a seviciar os pobres em privilégio dos burgueses.
É fomentando a ilusão de que na democracia todo fodido pode se tornar burguês através do mérito próprio que a burguesia detém o controle do Estado. Fazendo com que o fodido se sinta um burguês latente, a ponto de se realizar. Ela o faz crer que ele pode ser uma empresa, ainda que o faça esquecer que o capital da sua empresa, descontada sua força de trabalho escrava, é só uma bicicleta, um carro alugado ou um contrato social de pessoa jurídica.
A anedota de tudo: ao se sentir pertencente a uma hipotética classe média o cidadão assume a arrogância, a violência, o preconceito, mas também a insubordinação. O capitalismo vai concentrando renda, é de sua essência, e as primeiras camadas da classe média se vão proletarizando. E o aparato estatal, que é uma mentira burguesa, não tem ainda meio de coagir essa classe média desacostumada à humilhação.
A polícia dá baculejo em pobre, o juiz cresce em cima de pobre, o fiscal intimida e achaca pobre, porque o pobre é secularmente acostumado a relevar. Sabe que se assim não fizer, morre. Esses recém-admitidos às camadas baixas não aguentam desaforo. Têm dinheiro. Tô pagando, dizem.
É preciso matar o capitão do mato. É ele quem sustenta o senhor de engenho. Nossos excluídos têm isso a aprender, por duro que seja admitir, dessa classe média escrota: a insubordinação. Quem sabe a vinda destes novos pobres, até ontem novos ricos, seja pedagógica às classes menos favorecidas e elas se revoltem e interditem o poder de um Estado de mentira.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista