Seria melhor se bastasse apenas conversar. Cada um mostraria, ordenada e serenamente, suas necessidades e possibilidades de contribuição. José precisa de 100 mas, limitado por uma doença que, inclusive, levará muitos meses para curar, só consegue produzir 60. Maria precisa de 80 e pode produzir 110. Carlos precisa de 120 e pode produzir 130. O total das necessidades é 300 (100+80+120). O total da produção possível também é 300 (60+110+130). Cada um acredita na sinceridade dos outros dois, ou seja, que estão dizendo exatamente o que precisam e o que podem produzir com o máximo de esforço. Maria e Carlos, que podem produzir mais do que precisam, têm solidariedade bastante para entender o problema de José. Decidem então produzir o máximo que podem e doar seus excedentes para José, enquanto este não se recuperar totalmente. Maria e Carlos têm toda a confiança em que José, no lugar deles, faria o mesmo. Quando José ficar bom, voltam a conversar, decidindo sobre o esforço de produção e do desejo de lazer de cada um. Conversam tão agradavelmente que concluem com facilidade sobre suas aptidões, sobre o que cada um faz melhor e com prazer. Não há custo de desconfiança, nem desperdícios provocados por violência. Nem o custo da acumulação insana: para que se matar entesourando se, em caso de necessidade, os outros socorrerão e se ninguém dá valor à ostentação? A produtividade seria máxima. Esta seria uma sociedade de seres humanos. Utópica? Talvez. Mas prefiro acreditar que ela é possível e é nela que me inspiro. É por isso que, no próximo dia 7 de setembro, vou gritar alto pois eu, que tenho um bom padrão físico de vida, sou excluído da possibilidade de viver a alegria espiritual de um mundo assim. Vou gritar no ouvido da elite, surda pela ganância. Que precisa de 150 mas, apesar de não se esforçar nem mesmo para merecê-los, acaba ficando com 5000. E não paga os impostos correspondentes aos custos dos serviços que o Estado lhe presta. Elite que, como diria Bretch, é idiota, pois não sabe que também é uma excluída daquele mundo humanista de José, Maria e Carlos, embora uma auto-excluída (**). Vou gritar também no ouvido de alguns excluídos de fato, ensurdecidos pela desesperança.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista
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(*) Este artigo foi publicado no Dia dos Excluídos de 2000, no Diário do Litoral. Encontrei-o por acaso ontem, ao arrumar meus artigos. Está aqui praticamente na íntegra, tendo retirado apenas as últimas duas e meia linhas finais, que se referiam às eleições daquele ano.
(**) Para não mutilar mais o artigo original (além da supressão feita), lembro duas frases, de fontes díspares, mas igualmente pronunciadas por dois humanistas. Uma, constante da Segunda Epístola de Paulo aos Corintios: “Quem colheu demais não teve excesso; quem colheu de menos, não teve falta”. Outra, constante da “Crítica ao Programa de Ghota”, de Marx: “De cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades”.